terça-feira, 21 de abril de 2020

Impressões sobre o livro de contos Na Outra Margem, O Leviatã




Às vezes fico tentado a adquirir "Os melhores contos..." de um determinado autor - de que gosto; desconhecido, mas por cuja obra tenho curiosidade etc.

Percebi, contudo, que os melhores contos nem sempre devem vir todos juntos em uma mesma obra - embalados a vácuo e no frigorífico de algum supermercado. Uma melhor experiência a respeito da composição autoral e do diálogo de determinado conto "sensacional" deveria ser desfrutada na leitura da obra em que o conto teve sua gênese. 

Enxergo isso nos contos de Sidney Rocha; em Guimarães Rosa e em alguns livros de contos do Stephen King - porque neste autor a reunião de alguns é gratuita, simplesmente contos muito grandes para serem lançados em revistas como "contos" e pequenos demais para os padrões editoriais para sair como livro, e eles não tem coragem de chamá-los de "novela". 

A reunião de contos sobre a qual quero despejar minhas impressões tem essa qualidade de fazer parte de um universo - música de galáxia ao fundo - e me levou a um caminhar cheio de incertezas e de questionamentos enquanto eu vestia os calçados de seus personagens.

Falo de Na Outra Margem, o Leviatã (Ed. Lote 42, 112 páginas, 2018 - belíssima diagramação), do autor e acadêmico Cristhiano Aguiar.

Parece-me óbvio que alguns fatos no livro surgiram de experiências pelas quais o autor passou após sua chegada em São Paulo - Cristhiano é de Campina Grande, na Paraíba e morou por algum tempo em Recife-PE antes de cursar seu Doutorado em São Paulo -, e muito também de histórias orais e tradicionais do ambiente rural.

No ambiente urbano, destaco o Edifício Hannah quase como um personagem dentro de outro personagem, a própria cidade de São Paulo. No condomínio se passam algumas das histórias, e nelas me senti transportado para uma outra dimensão, na qual os pensamentos ganhavam vida de maneira objetiva e isso não era novidade para ninguém - repito, foi minha impressão subjetiva, como se algo de realismo fantástico pairasse dentro de mim mesmo enquanto lia a obra...

O primeiro conto são pequenas estórias - Miniatura.
  Em Um Piano no Domingo, a execução da música conduz o narrador a explorar um pouco seu olhar sobre os vizinhos e  aspectos antes não percebidos desse dia da semana tão fora do tempo. Somos submetidos a uma estranha contemporaneidade, pois o recorte parece uma descrição de alguém isolado em meio a recente pandemia do Covid-19 - para mim, no conto há também um índice de modernidade retirada da frase de Karl Marx utilizada por Marshall Berman no título do seu livro Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: aqui não há a alegria dos músicos profissionais e/ou amadores em dividir suas imperfeitas execuções instrumentais com varandas e janelas solitárias e na expectativa de compartilhar algo em comum em meio ao isolamento - no mínimo calor humano, reconhecimento do sofrimento que nos é comum. Não, no conto vemos uma fotografia ou quadro que é a síntese de uma classe média urbana (a "negra de vestido branco limpava a janela", o idoso em cadeira de rodas que contemplava - o vazio? - pela janela) que irá colapsar ao primeiro sinal de crise.
  Em Tua Presença gostei do uso das metáforas. Elas contextualizam, em certos momentos, a cenografia, e dão impulso à narrativa, sem ser necessário uso de ação, como no "baú de coisas ausentes".
  Naturae me brindou com o realismo fantástico de que falei. As alegorias funcionam como gestos no ar que parecem passe de mágica; a rachadura no reflexo do espelho é uma distorção que a pessoa enxerga em si própria, não inata, mas fruto de sua vida vivida, sejam quais forem os percalços - "a rachadura sempre existiu ali".
  Em Trappist-1 o faxineiro me mostrou o tempo e a insignificância da duração de uma única vida.

Já no conto Recortes de Hannah, Lina e Lucas se conhecem em um elevador que acabara de quebrar. Enquanto conversam sobre como chegaram ali e o que fazem, lemos recortes de outras situações vividas por eles. Senti a existência da persona, da imagem a ser mostrada para os outros, um flerte com o inconsciente e com a psicanálise - "Ali, seu pai sempre vencia", no conflito de Lina com a forte presença da memória do pai, mesmo este em cadeira de rodas.
O insólito não estava na Graphic Novel escrita por Lucas, mas sim em uma cena em que dois monges barbeiam um mendigo - Caetano, figura que reaparece no ótimo conto Desaparecido - sobre como uma metrópole pode engolir, digerir parcialmente e regurgitar alguém em seu processo de loucura.
Na verdade Lina é quem entra em "pane" no seu encontro com o pai, e Lucas é quem vive uma situação insólita dentro do elevador.

Senti, no conto O Laboratório do Senhor Mosch Terpin, uma mudança na voz narrativa em cumplicidade com Faustine, personagem do miniconto Naturae. Foi o conto de que menos gostei, mas tem excelentes elipses - especialmente quanto ao tio Henrique do Natanael - e, como em outros recortes, referências à cultura pop.

Os Recém-Nascidos traz outro conflito de Faustine com seu passado, dessa vez por descobrir que seu avô era um fazendeiro/coronel que ajudava a ditadura e participou ativamente de sessões de tortura. Sua história é entremeada com a do professor Estêvão e da relação deste com sua mãe, cuja memória desperta ao escrever na lousa a frase de um poema, "Na voz quieta / O nascimento de criaturas marinhas". A recordação deles na praia em meio ao nascimento das tartarugas é de um lirismo bem legal, porém com um fundo pessimista que dá o tom da relação vivida por Estêvão com seus familiares. Há, no fim, uma conexão entre Estêvão e Faustine, mas me pareceu um pouco fora de propósito isso ter ocorrido no conto. As duas histórias poderiam ser contos separados sobre cada um dos personagens.

Terasa eu li e reli. Foi o conto de que mais gostei. Possui um lirismo não usado em outros contos do livro. Creio que seja um dos contos mais maduros, junto com Desaparecido e Laviatã - justamente os três últimos. Há um dialogismo bem presente com obras clássicas, como o Velho Testamento (a mulher samaritana) e a Odisseia. (Tem um anagrama lá, coisa pra nerd feito eu descobrir: Esparta, p. 75).
Teresa vive sua vida com seu marido que retornou de São Paulo e parece ter arrumado alguns problemas ao amealhar seu quinhão de glória monetária para abrir um pequeno negócio na cidade natal. Enquanto isso, ela revive momentos de espera, leituras ao pé do sono, pássaros que abundam em silêncio. E somos apresentados aos poucos a uma tragédia que ocorre no lugar em que ela mora. Parece-me que já estava escrito pelos deuses.
Por coincidência eu escutava Echoes do Pink Floyd ao ler o conto, e repeti a faixa assim que repeti a leitura. 

E por coincidência também eu escutei Seamus e Shine on you Crazy Diamond (tem um cão no conto e um uivando na música Seamus, e Shine... bem, já diz tudo) ao ler Desaparecido, um recorte da história de Caetano, já mencionada acima.

Leviatã, outro excelente conto, tem duas estórias - Faustine na Planície e Natanael e o Rio.
Faustine na Planície, não só pelo título, mas também pelo tom, me lembrou do filme Pauline na Praia e das histórias congêneres do Eric Rohmer. Em uma ONG no interior (da Paraíba?) ela percebe que a ação humana, o verter humano sobre outro é barrado por questões burocráticas não apenas fora, mas principalmente dentro da atividade da organização. Em certo momento ela tem um contato com a natureza para além da apreensão subjetiva das coisas, mas ela se torna o seu redor. Uma cena de apenas dois parágrafos, escrita belamente.
Natanael e o Rio para mim foi o trecho mais bem escrito do livro. Uma aula de literatura, de como conquistar o leitor. Natanael tenta viver uma experiência, ao escrever um livro, com um mergulhador profissional no rio Tietê. Ele conta como foi a Lucas, o narrador, e a Faustine. Em determinado momento, já no rio, Natanael encontra algo que o transporta, mesmo que por poucos segundos, a um onde que parece mais o Reino Quântico do filme Homem Formiga, um portal para o por dentro do dentro das coisas. O mergulho em si tem um quê de história de pescador com espírito de pirata, e o desfecho é voltar para a barriga do monstro, a cidade.

Digo algo: leiam o livro. Cristhiano precisa nos brindar com mais de suas estórias, e as últimas desse livro têm uma grande chance de nos mostrar o que esperar de futuros trabalhos.