domingo, 16 de fevereiro de 2020

A ficção científica diante do consenso (Trilogia Fundação)

Fundação.

Segue aqui minha leitura. Não foi apologética.
Na verdade algumas passagens e parteda trama me incomodou muito.

Acabara de ler o conceito de psico-história em Fundação - algo que envolve estatística, Psicologia das Multidões, etnografia e vodu - e me lembrei do livro que li antes. Esse sim um livro de psico-história - sem o vodu e mais pra psicanálise, mas dele falo depois.

Em Fundação, várias épocas e quadrantes da galáxia desenvolvem a história da tentativa de um homem - Hari Seldon, um senhorzinho boa praça e muito inteligente - em salvar o futuro do império galáctico. Ele planeja algo que vai além do longo prazo, questão de centenas de anos, a fim de impedir a ocorrência de um hiato histórico de trinta mil anos sem ciência nem tecnologia. Esse vácuo cairia para meros (!) mil anos. Isso seria possível devido à elaboração de uma vasta Enciclopédia.

Para tanto, ele consegue que o Conselho Galáctico envie Seldon e outros matemáticos para Terminus, um planeta nos confins da galáxia, a fim de elaborarem a mencionada Enciclopédia. Foi então proclamada a Fundação da colônia. Além de Terminus, há um outro planeta em que uma outra Fundação ocorreu - do outro lado da galáxia - mas dele creio se saberá mais mesmo é no livro "Segunda Fundação".
Cinquenta anos após a Fundação, um holograma de Hari Seldon aparece e revela que a Enciclopédia é um logro. 
Com o desenvolvimento da narrativa, percebi que eles já estão dentro do tal período de mil anos e que os atos de Seldon não são teleológicos, mas têm consequências diretas e imediatas, ou seja, ele, com sua psico-história, criou o ambiente em que alguns personagens poderão realizar um "mapeamento de crises, e a conclusão bem sucedida das anteriores" levará a uma nova crise, o que permite a preservação de conhecimento, tecnologia e relações sociais entre as civilizações que aparecem no livro.
Essa é a premissa básica da trama.

O início do livro é meio chato, confesso. Asimov repete dados de tempo e espaço como se quisesse lembrar o leitor dessas figuras, no fim irrelevantes, apenas para nos situar em um tempo e espaço que não são os nossos. Faltou sutileza.
Algo magistral que ele criou foi a possibilidade de discussão de questões sociais, políticas e até mesmo religiosas (as quais, no livro, não deixam de ser políticas) em um ambiente em que os fins justificam os meios. Ainda assim os personagens principais, em determinados momentos, sempre procuram agir sem violência, sem derramamento de sangue, porém suas ações são bem manipulativas.
Essa manipulação é bem palpável e até mesmo ostensiva no texto quando um dos personagens cita que a psicologia - disciplina esotérica, mas não mística, já que não havia mais psicólogos no futuro de Terminus - não é individual, e sim uma disciplina capaz de ser utilizada para manobrar massas.
A partir daí, há um impulso da história a levar os personagens principais e até mesmo os antagonistas que defendem a Fundação a cumprir um "Destino Manifesto". A Fundação deve prevalecer a qualquer custo.
Um dos grandes "inimigos" da Fundação é um personagem que surge no segundo livro. Ele é quase um bicho-papão. O Mulo (sim, o marido da mula...).
Abaixo falo mais...

Algo me incomodou e me incomoda profundamente nesse texto. Cadê as mulheres? Notei isso no início e, ao chegar no décimo capítulo, reclamei em voz alta que não há uma personagem feminina sequer. 
Depois, quando a primeira mulher aparece, ela é "amarga" (sim, há no texto essa admoestação), vingativa e usa como argumento o poder e influência do pai para exigir determinadas atitudes do marido.
No segundo volume fica expresso no texto que as mulheres são consideradas inferiores no futuro do universo Fundação de Asimov. E isso porque a primeira mulher  de destaque na trama é Bayta, e há questionamentos de alguns homens do porquê de ela se sentar com eles como uma igual.  
Bayta não se intimida, mas os outros homens só ficam satisfeitos quando é dito que o seu esposo a trata como uma igual.
Posso estar a forçar a barra aqui, mas isso me incomodou. Tudo bem que a obra foi escrita a partir do fim da década de 1940 até o fim dos anos 1970, mas, poxa, quantas travas, né. Estou sendo anacrônico, mas se isso me incomodou, é porque sinto que eu mudei. 
Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray cunhou a frase: "Toda crítica é uma autobiografia", e isso vale para mim neste momento.

Voltando ao Mulo. Por que não a ideia do Mulo no livro para domínio da galáxia não seria tão boa quanto à da Fundação? Por causa desse djabo do "destino manifesto" do Seldon. Como já havia um plano, ele teria de ser efetivado...
Quanto à Segunda Fundação, não darei spoilers, mas só digo que a narrativa/explicação é mais de fantasia do que de ficção científica.

O livro é muito bem escrito. Não sei se me repito aqui quando digo que Asimov domina com maestria na obra uma visão de longo alcance em relação a escolhas governamentais e seus reflexos sociais e na vida de determinados indivíduos. Ele nos dá uma lição sobre a importância da História como disciplina e em como decisões com base apenas na economia (como obter os resultados de forma mais eficaz?) não são acertadas a longo prazo.

Resumo da ópera, 3 de 5. 

Lido no Kindle, edição Box Fundação, 833 páginas.

Segue a bela capa da edição especial lançada pela editora Aleph