quarta-feira, 23 de outubro de 2019

O Palácio de Inverno

O palácio de inverno.
Narrado em duas frentes temporais: do passado ao presente e do presente ao passado, com capítulos alternados.
A história é bem contada, especialmente quando narra do presente ao passado.

Não vou dar spoilers, apenas dizer que se trata de um relato em primeira pessoa sobre um casal que fugiu da Rússia pós Romanov e foi parar na Inglaterra. 
Há cenas belíssimas, de uma profundidade no caráter dos personagens; as mentiras que vamos descobrindo como leitores; os sentimentos revelados nos atos.
A relação do casal com o neto, com a filha, momentos de crise no relacionamento; a participação da mulher na economia; o período entreguerras e o colaboracionismo do narrador (ficou muito massa essa abordagem), tudo isso nos mostra que o cotidiano dá um baita caldo literário...

Mas algo me incomoda no tipo de enredo que ele escolheu: os personagens não carregam a história, e sim são definidos pelo que o autor pretendeu, como se fosse um romance histórico. 
No meio do livro eu já sabia sobre dois acontecimentos cruciais - ambos históricos - em que os personagens principais estavam envolvidos. O leitmotiv do livro achei muito bom, afinal é o que dá o início à narrativa, mas no segundo era totalmente dispensável a participação de Geórgui Jechmenev, o narrador.
Ficou a sensação de clichê e de que o autor forçou a barra para pôr Geórgui em determinado local e em determinado momento.

Boyne usa por vezes um vocabulário desconhecido por mim, assim eu aprendi mais... Isso se deve ao fato de que o protagonista, Geórgui, ficou apaixonado por livros quando entrou em uma biblioteca palaciana e, na Inglaterra, seu emprego foi ser justamente bibliotecário.
O que mais me fascinou em Geórgui não foi seu vocabulário, tá, pedante basta eu hehehe - e o que é mérito de John Boyne - e sim em como o autor utilizou a regressão temporal para nos mostrar como o personagem ganhou as cicatrizes - físicas e mentais - que conhecemos de antemão.   

Bom e enfim: esse é o primeiro livro que leio do autor, e ficou a sensação de que ele é um escritor que se repete nos plot twists (vi o filme de O Menino do Pijama Listrado), mas não negaria a leitura de outro livro dele. 



domingo, 13 de outubro de 2019

Legado Lovecraftiano

Ainda sou muito stephenkingiano (apesar de não ter lido nem um terço das obras deste), mas tenho me aventurado cada vez mais no universo lovecraftiano, e busco isso agora de uma maneira transmidiática, mas isso são outros quinhentos.

Busco, também, autores que trazem essa influência de Lovecreft em sua obra e os seus contemporâneos, com quem ele chegou até a se corresponder, como Algernon Blackwood e Clark Ashton Smith


Dos nossos contemporâneos, gosto muito do Victor Lavalle, de quem já falei um pouco, mas agora tenho buscado obras, por sugestão de leitores americanos, do Thomas Ligotti

Enquanto garimpava títulos desse autor, me deparei com este de não ficção: The Conspiracy Against the Human Race, no qual ele quer nos falar sobre horrores tão reais que parecem ficção.

Para quem compreende ingês, vai aqui um pouco sobre a obra: 




sexta-feira, 11 de outubro de 2019

"Tragam seus mortos", ou James Joyce e a dança da vida

Os Mortos.

Escrito quando Joyce tinha entre 25 a 27 anos. Son of a gun!

Minha ideia inicial era escrever sobre Dublinenses, a festejada coletânea de contos do autor. São textos em que ele...
Falo sobre o resto do livro depois.
Aqui quero celebrar esse conto que considero um dos melhores textos que já li em minha vida. 
E como li só há pouco tempo, além dos quarenta anos, e sendo um leitor bem melhor do que há vinte anos, estou certo de que é uma obra-prima.
Destoa muito dos outros contos de Dublinenses. Apenas na primeira página você já nota o quanto Joyce nos diz tanto com tão poucas palavras, confiando que você, leitor, vai captar as idiossincrasias das personagens, a maneira como o autor mostra os acontecimentos em vez de descrevê-los - show don't tell.

A par das inúmeras figuras marcantes do livro - Gretta, as Srtas. Morkan, Freddy... - e outras nem tão marcantes, mas com papel central no desenrolar dos acontecimentos, tais como Molly Ivors e Lily - é inescapável que a trama é tecida ao redor de Gabriel Conroy - professor, escritor, orador, poeta...

A história de Os Mortos é permeada de símbolos, metáforas: temos logo no início Lily, lírio, flor ligada aos funerais, com sua brancura e a da Dublin cercada pela neve; alusões às Melodias Irlandesas de Thomas Moore, em que uma das mais conhecidas é "Ó, vós, os mortos!". Vejo, e aqui é uma egolombra, esse diálogo, ou melhor, essa dança entre os vivos e os mortos em todo o conto: na música, na quadrilha, na comida do jantar, nos nomes, no fim do período natalino etc.
Joyce faz um uso magistral do discurso indireto livre, e as vozes narrativas, que no início confundiram esse leitor desatento, é indício para nós do quanto o narrador pode mentir descaradamente. E que prazer descobrir esses enganos, propositais ou não.
O conto de Natal pode ser dividido em três atos principais, assim imagino - o início, com a chegada dos convidados na casa das tias de Gabriel, as Srtas. Morkan; o meio, quando começam as danças até o jantar ou a saída dos convivas e, por fim, da saída dos convivas até o final, ou da chegada dos Conroy - Gabriel e Gretta - ao hotel.

Não vou estragar o prazer de quem não leu - só um pouco. Quero aqui falar sobre Gabriel, e comparar a algo com o qual creio de que somos feitos - mitos. Mitologemas, para ser mais exato. Arquétipos, para ser mais amplo.

Gabriel encarna aquilo que se costuma chamar de unilateralidade da personalidade consciente. E, com sua persona inflada, não reconhece a própria vulnerabilidade, os espaços - ou vazios - obscuros dentro de si. Não reconhece o outro por ser muito cheio de si, isso sim.
Ele é o Arcanjo da Anunciação, o Orador, aquele a quem as principais atenções parecem ser dirigidas. 
Ele parece ter se identificado com um poder divino interno.
Um tema que predomina nos textos de Joyce é o Renascimento Irlandês - o amor às tradições, símbolos e arte da pátria. 
Em alguns dos textos, vemos mesmo o viés político desse patriotismo, anterior à independência irlandesa. Como exemplo, temos o conflito entre católicos e protestantes. Ser um irlandês é ser papista, enquanto os protestantes são fruto das escolhas de Henrique VIII, ou seja, dominados e aliados aos ingleses.
 Gabriel, levado a esse assunto por Molly Ivors, quer estar por cima da carne seca, parece ser um cosmopolita europeu, e não um bairrista de um país sob o império do Reino Unido.
A forma como ele se sentiu humilhado por Ivors, a maneira ríspida como Lily lhe respondera no primeiro ato, e toda a excitação febril ansiada e barrada por outro poder divino - Micheal Furye, arcanjo Miguel, o Furioso, o guerreiro matador - só me fazem pensar que em sua hybris, em sua personalidade inflada, se afastou de sua medida humana, seu metron, e apenas lhe fora aberto o caminho para sua reconciliação com a parte perdida de si mesmo no fim do livro, ao perceber a força das coisas "mortas" - ideias, sentimentos, ou seja, a vida interior, sua e do outro.


Lido no livro


Dublinenses (Dubliners)

Tradução de Caetano W. Galindo
Companhia das Letras/Penguin


Gosto muito da capa da edição da Ed. Autência;  de 2006, creio eu. Ela é o registro do discurso de Gabriel quando do jantar de Natal.

sábado, 5 de outubro de 2019

Trouble Man

Aquele que provoca problemas, aquele que é o problema?
No mês de setembro tornou-se tradição uma preocupação com doenças mentais tais como depressão e outras questões que podem levar ao suicídio.
Outro dia estava falando com meu pai sobre a morte de Marvin Gaye, e não chegamos a uma conclusão - eu achava que ele tinha sido morto no camarim de algum show (tirei isso de alguma memória fictícia) e meu pai dizendo que tinha sido em casa, durante uma briga com Marvin Sr. enquanto o cantor estava sob efeito drogas.
Meu pai estava no caminho certo, mas não houve briga causada por efeito de entorpecentes.
Marvin Gaye queria se matar.
Sua relação com o pai sempre fora conturbada, desde a infância. O pai era um pastor que praticava cross-dressing, e Marvin Gay - na época - sofria bullying de colegas e, em casa, era perseguido pelo pai por ter um temperamento sensível - depois ele acrescentou um "e" ao seu nome artístico.
Em turnês, Marvin Gaye era usuário de cocaína, bebia muito, e não gostava dessa vida na estrada.
Talvez por ter consumido o dinheiro ganho nas farras, talvez por seu temperamento introvertido, ele não conseguiu amealhar muita grana e esporadicamente ficava na casa dos pais, quando o Jr. e o Sr. sempre discutiam.
Seu pai já havia dito aos demais filhos, inclusive publicamente, que os mataria se qualquer deles o agredisse fisicamente. Após uma briga com Marvin Gaye, em que este chegou até a chutar o pai, a promessa foi cumprida.
Após ler a história, não deixei de me emocionar, mais com o desenrolar na vida do pai, destroçada. Ele se arrependeu muito, conseguiu uma pena leve e chegou até a ser operado de um tumor na base do crânio.
Marvin Gaye queria morrer. Isso ficou muito claro para a família, porque ele já havia falado sobre isso há tempos. Tinha um comportamento paranoico, com mania de perseguição e, após ser alvejado por seu pai, ainda conseguiu dizer a um dos irmãos que finalmente conseguira o que queria. O fim, triste para sua carreira e vida em família.
Obs. Escrevi o post enquanto escuto à trilha sonora de Trouble Man.