sexta-feira, 5 de junho de 2020

Impressões sobre O Legado de Eszter, de Sándor Márai

- Qual é seu limite, Lajos?
- Que pergunta é essa, qual o limite?
- Qual é o limite? - repeti. - Imagino que todo homem tenha algum limite em que há uma medida para o bem e para o mal. De certo modo, para tudo o que é possível entre os homens. Mas você não tem limites.

Eszter, uma mulher. Seu legado, mais do que um patrimônio dilapidado pelo homem que um dia amou, e de forma recíproca também foi amada.
Mas esse homem só vivia por e para sua própria vontade, alheio aos demais, como um dionisíaco nietzscheano cujos atos se tornavam meras desculpas na mente dos outros.

Depois de vinte anos essa sombra do passado retorna. Seus impulsos são uma história de poesia, como diz Eva, sua filha e também vítima, e não de memória.
Lajos, para a filha, é como um caçador que precisa desbravar a selva e, após encontro fatídico para a presa, continuar, pois o que importa é a caçada, e não o troféu.

Eszter, narradora da história, e psicologicamente muito bem construída, nos leva a seguir as mentiras em que ela própria acreditava. Ela é acossada por figuras do passado, vivas e mortas; por uma juventude - representada pelos sobrinhos - cujos termos do contrato social lhe escapam e pelo pacto com a morte que parece ter realizado com Nunu, a antiga governanta da casa e que desempenha, na trama, o lúgubre papel sapiencial dos que estão além do véu das coisas palpáveis.
Nunu é apresentada como alguém que ficou na casa de Eszter porque ocupou o papel social da matrona. Veste-se de negro da manhã à noite, e é a única que, desde o início da obra e em meio às vítimas de Lajos, parece saber o que traz este de volta à casa.

No fim, Lajos, além e acima de todos os limites, reconhece que até direitos possuem limites, mas, no seu caso, os da prescrição, ou seja, em seu benefício. Em sua intimidade com os demais ele não reconhece limites, ou os flexiona até o ponto de ruptura...

Para Eszter, ainda que em um momento patético quanto ao que Lajos sentia por ela, ele era tão bom no que fazia que conseguia "mentir inclusive com fatos", e nisso Márai foi grandioso, não sacrificou a frágil integridade de Eszter a um enlace de redenção passional. Como Lajos diz-lhe: "Uma mulher, uma mulher. (...) Trata-se de você, Eszter. Trata-se de você".

O livro tem um tom que lembra os das peças de teatro, com diálogos rápidos e reflexões monologais. A moralidade que perpassa a obra demonstra a separação, nas relações humanas, entre o legal e o legítimo, e em que a fé é a dos espaços sociais, a crença de que se pode contar em ser algoz, pois a mesa da vítima já está posta. 

Vale muito a leitura. 

O Legado de Eszter, de Sándor Márai. Escrito em 1938.
Cia das Letras
Trad.: Paulo Schiller


Cartão Postal - Hungria, década de 1930