quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Horror Topográfico, racismo e Mythos - um caso Levecraft

Estamos meio que acostumados a ver histórias sobre lugares assombrados - um quarto, um guarda-roupa, uma casa, um carro - mas geralmente essas assombrações provêm de forças ou pessoas já mortas que tiveram uma ligação pretérita com o local por este ou aquele motivo.

Em muitos contos de H. P. Lovecraft, encontramos uma premissa que vai além da casa assombrada; ele nos apresenta a locais que possuem um poder telúrico próprio e que foram, no passado literário, descobertos por nativos e, a partir daí, usados como centros de poder, de culto etc.
Com base nisso, e lembrando-me de outros autores, podemos dizer que existe um Horror Topográfico que vai além dos de uma "alma penada" ou emoção impregnada que habitam determinado local. Essas histórias nos trazem uma localização geográfica específica como protagonista e que desperta nos personagens horrores de diversas miríades.

Após ler os contos Ele e Horror em Red Hook tive vislumbre dessa constatação. Esses contos fazem parte do livro A Cor que Caiu do Céu, em que este conto homônimo foi considerado o marco da entrada de Lovecraft na ficção científica - e nos traz também um Horror Topográfico, mas do primeiro tipo, ou seja, uma força externa que contamina um local.



Vamos primeiro aos de horror.

Ele
O conto, em primeira pessoa, nos apresenta a um narrador nostálgico dos velhos tempos de velhas grandes cidades, tais como Londres e Paris, pois ele não reconhece essa grandeza na Nova Iorque do seu tempo (década de 1920), infestada de "gente morena e atarracada". O narrador é reflexo do autor, pois sabemos que Lovecraft era xenófobo e racista. 
(E penso, com meus conhecimentos, que tanto Londres quanto Paris não o alegrariam mais hoje - ainda bem! - apesar de nunca ter deixado de haver, em maior ou menor grau, incursão de outros povos a essas cidades. Se a obra de Lovecraft foi exaltada postumamente, sua figura humana tem sido cada vez mais apequenada diante de seus preconceitos idiotizantes).

O conto tem uma nota autobiográfica. O primeiro parágrafo, então, é considerado por especialistas como uma descrição do que sentiu o próprio Lovecraft quando se mudou para Nova York após seu curto casamento - ficou na cidade de março de 1924 a abril de 1926, tendo retornado a Providence, Rhode Island. Olha aqui um trecho do conto:
"Minha vinda a Nova York tinha sido um erro; pois ao considerar que eu estava em busca de maravilhas estonteantes de inspiração nos inúmeros labirintos de ruas antigas que se entrelaçavam interminavelmente desde esquecidos pátios, [...] na verdade encontrei apenas um sentimento de horror e opressão que ameaçava me dominar, paralisar e aniquilar." 

"Ele" é uma figura pitoresca e anacrônica que aborda o narrador, pois havia observado as andanças deste pelo bairro de Greenwich.
(...era idoso, mas de boa estirpe, pensa o narrador). "Ele" perguntou ao narrador se não poderia ajudá-lo a explorar o bairro, pois possuía conhecimentos dos locais.

E aqui entro na conjectura em termos de Geomancia - linhas de hartmann e de ley etc.
Há também um expediente usado em outras histórias - só não sei se, com meus parcos conhecimentos, isso era uma constante ou se tornou um tipo de plot recorrente de obras pulp: a Fórmula do Desconhecido que desaparece. Sim, isso, aquele objeto - talvez um McGuffin - que move a narrativa e é mais um apetrecho do que uma entidade.
Deixo ao leitor a curiosidade para descobrir do que estou falando.  

Horror em Red Hook
Foi a primeira vez que li esse conto. Terrível. Difícil moralmente e humanamente falando. Por que moral? Porque os valores sociais hoje requerem respeito a qualquer etnia, às individualidades e ao próximo como um todo. Por que humano? Porque, partindo de uma instância pragmática (William James e Richard Rorty), esses valores são contingenciais, porém vivemos em uma grande contingência, de sei lá quantos mil anos atrás, que é o fato, na verdade a constatação) científico de que somos homo sapiens sapiens, ou seja, temos consciência de nós mesmos e do próximo, e ser um humano é o que me aproxima de outrem. Dessa forma, assim como sofro, o outro também sofre ergo porque eu não quero sofrer, não devo causar sofrimento a ninguém, especialmente por desrespeito a suas origens étnicas e culturais.
Nossa... que digressão. Mas foi válida. Com isso, diferentemente do outro conto, em que o preconceito racial estava no narrador em primeira pessoa, aqui a voz narrativa é do próprio HP Lovecraft, e ele destila (destila não, é grosseiro mesmo!) todo seu preconceito contra pessoas de pele escura, latinos (espanhóis, italianos) e outros.
No segundo capítulo do conto, quando somos apresentados a outro personagem, Robert Suydam, eu fiquei: "peraê, já vi esse nome em algum lugar...". E já! Está na fantástica novela neo-lovcraftiana A Balada do Black Tom, agora com tradução em português, a qual li no kindle há alguns anos. O autor, Victor LaValle, é um excelente contador de histórias - Neal Gaiman level - e deu sua versão para esse conto de Poe (de onde eu tirei Poe!? - acho que meu pré-projeto da pós não sai de mim...) Lovecraft. A diferença - spoilers alert - é que a "entidade do mal" não é Cthulhu, e sim uma dama da qual ouvimos falar muito por causa da Blizzard (Oi, Diablo!) 

Robert Suydam é um ricaço de família holandesa que tem juntado pessoas de pouca fama sabe-se lá para quê. Adquiriu propriedades no Brooklin, em um local pouco considerado pela sociedade, e lá tem feito alguns experimentos e cultos macabros. 
O  policial Thomas F. Malone não era um "detetive do oculto", mas um detetive em busca do oculto. Possuía curiosidade pessoal no caso, porque não ligava muito, óbvio, para as pessoas que estavam desaparecendo. 
Eu costumo enxergar nesses contos de Lovecraft, além do horror cósmico, que aqui não está presente, um Horror Topográfico. Em suas obras, e de maneira preconceituosa, há um senso de comunidade. Nesse conto vemos isso em Chepachet e Pascoag, que ficam em Rhode Island, cidade na qual o policial vive após os acontecimentos fatais do conto.
Além disso, muito do que se passa nesse e no conto anterior está ligado a passagens subterrâneas e a uma "força" que vem da terra, de uma determinada localidade, como se fosse um portal para outras dimensões - algo que tem a ver com as Linhas de Hartmann e Linhas de Ley acima mecionadas e "chaminés cosmo-telúricas" (What!? Oh, yeah!) - vou ficar de olho nisso e escrever mais sobre o assunto, ligado à literatura especulativa, claro.
Para quem lê inglês, recomento efusivamente a leitura desse artigo da Tor.com, editora que publicou The Ballad of Black Tom:
https://www.tor.com/2016/02/17/book-reviews-later-the-ballad-of-black-tom-by-victor-lavalle/

Ah, e se liguem que a HBO vai realizar uma nova série baseada em contos do Lovecraft, na qual trará temas como racismo e outros preconceitos ligados às obras do autor.

A Cor que Caiu do Céu
Minha gente, esse conto foi transformado em filme, filme B! Vi o trailer e é com o ator que amamos porque odiamos: Nicolas Cage. Caramba, tem tudo para bombar... no mal sentido, claro.

Voltando ao conto, foi um dos melhores contos de terror espacial que li - ah, leiam Terror Espaciar da MSP Graphic Novels (uma das primeiras lançadas, e com o Chico Bento).
Muito bem escrito, naquela prosa um pouco rebuscada de Lovecraft, mas que sabe prender o leitor e fazer com que ele deseje mais. Na verdade, vai além disso, chega a causar uma imersão do leitor, uma angústia com o que ocorre... Os melhores escritores conseguem isso, né.

Aqui o Terror Topográfico ocorre com uma pedra que cai do céu e causa uma comoção em um ambiente rural. Algo sai de si... uma cor! E isso transforma a região e as pessoas. Transforma como? Como age? Lê, cilvuplê.

Livro:
Coleção em três volumes da Editora Chronos: H. P. LOVECRAFT, Os Melhores Contos




Edit em tempos de Covid-19. Cristhiano Aguiar, escritor e acadêmico, escreveu este belo artigo sobre A Cor que Caiu do Céu. Ele faz um contraponto lírico e angustiante entre o fascínio literário do inomimado quanto à "cor" e sua natureza e um momento de ausência de cor e calor humano em uma ida, durante a quarentena, à universidade em que ensina. Confiram:
https://www.revistapessoa.com/artigo/2946/a-cor-que-caiu-do-espaco-de-h.p.-lovecraft