quarta-feira, 6 de maio de 2020

Impressões sobre ASSOCIAÇÃO ROBERT WALSER PARA SÓSIAS ANÔNIMOS

ASSOCIAÇÃO ROBERT WALSER PARA SÓSIAS ANÔNIMOS

CEPE
226 p.
2015
Lido no Kindle

O primeiro romance do autor Tadeu Sarmento é contado em duas frentes, digamos assim. Uma na cidade paraguaia de Nueva Königsberg, e a outra dentro de um clube - a associação - para sósias.

A associação lembra mais - tanto pelo tom do texto como pelas práticas adotadas pelo sósia Hussein - um espaço para desintoxicação, algo como um "narcóticos anônimos". O sósia  do filho do ditador, cujas práticas mais remetem às de um professor em um acampamento, tenta levar os demais membros a práticas capazes de fazerem com que eles retornem a suas identidades originais - ou assim parece ser.
Achei isso genial - um sósia que se apaga de si mesmo.
Nesse momento da narrativa - em relação ao tempo cronológico, mesmo - a história é contada em primeira pessoa por um sósia que apenas se deixou tornar (como o escritor apagado, que lembra a Chiquinha do Chaves, com seu bigodinho abrilhantado por manteiga) o próprio Robert Walser - prolífico, mas esquecido pela posteridade - porque se apaixonou por uma garota que viu em um sebo, e se deixou levar pela ideia de desaparecer e tomar o lugar do escritor cujos livros ela buscava com tanta intensidade...



Em outro momento e espaço geográfico, mas sob um calor danado, vemos a chegada do filósofo Jean-Baptiste Botul à também fictícia Nueva Königsberg, no Paraguai, a qual abriga sósias de Kant - e estes fazem sua notória promenade sempre às 14h, faça chuva ou faça sol. Esse trecho do livro se passa na década de 60 do século XX, momento de intensa caçada a nazistas no cone sul, e Botul vai à cidade não apenas como um filósofo que faria conferências, mas também como um aparente caçador de nazistas.
Esse cenário da obra foi o que mais gostei. Aqui a história é contada em terceira pessoa, e captei aqui um misto de gêneros: das narrativas de fantasia quando o grupo de heróis entra em uma taverna, das histórias de caçadores de recompensa - modernas ou de faroeste - e do simples discutir filosófico sobre a vida. 
Um exemplo e uma síntese do que acima menciono é quando Sobol, em Nueva Königsberg, ao experimentar uma cerveja recém produzida, ao mesmo tempo sente raiva ao elucubrar sobre atos homicidas - ou seriam heroicos? De repente ele percebe que a cerveja não estava boa o suficiente para enviar para "A Coruja de Minerva" - a tal da taverna (mais uma estalagem). Ela havia azedado, concluiu o mestre-cervejeiro. Foi um boa mostra de como nossa percepção de mundo é temperada pelas nossas emoções.

A associação, por seu turno, possui muitos diálogos nos quais os personagens soltam frases de efeito praticamente toda vez em que aparecem - em especial Mark (sim, o Chapman). Há passagens geniais, ainda assim: a relação entre Mark e Lennon, que fingem não se incomodar, mas nunca estão no mesmo cômodo ao mesmo tempo; o aparecimento de sósias de badalados famosos que logo vão embora porque o local não era o ambiente festivo e de flerte que imaginaram; as elucubrações do narrador sobre a garota e sobre o que o levou a estar ali, e se seria possível retornar a(o) que(m) era.

Outra coisa que me incomodou foi que a narração em primeira pessoa tem uma sintaxe e performance muito aproximada da fala dos personagens que estão na associação, e até mesmo o tom dos diálogos é bem parecido, pois as frases de efeitos não são ditas apenas pelo sósia Mark. Antes fosse estilo indireto livre, mas isso permeia diversas falas, como mencionei. Creio que essa caricatura tenha sido proposital até determinado ponto, contudo a linha do exagero foi ultrapassada.

Quanto à narrativa, um dos capítulos de que mais gostei foi "o coração machucado como um pêssego, no qual o autor nos mostra como se perder na própria vida, sem chance de ser redescoberto e sem esperanças de que alguém peça resgate. Nesse capítulo o autor faz um paralelo entre a vida do sósia de Udai Hussein e determinadas escolhas que (se) faz(emos) na vida. Aqui fica claro para mim como podemos agir de forma neurótica para agradarmos alguém aquela parcela de nossa alma que quer agradar alguém. Solidão, carência, ambição, falso-amor... Quando não somos nós mesmos, e observando as escolhas em retrospectiva, o que de memória ainda queremos preservar?

Algo de que também gostei, e com a qual me identifiquei, por ser fã deste autor, é que a história tem um pouco dos absurdos e dos questionamentos existenciais trazidos nos livros do Enrique Vila-Matas (por falar nele, estou me devendo ler a coleção de contos Vampire in Love - reunião de contos em uma edição inglesa -, o romance Mac e seu Contratempo - pela Cia das Letras em 2018 - e Não há lugar para lógica em Kassel - pela ausente Kosac&Naify em 2015).

Vou poupá-los dos spoilers pesados, mas vou dizer que: Saddam não é quem parece ser, as linhas narrativas têm uma convergência, Lennon e Chapman têm novamente um encontro mortal.

Esse é o primeiro romance publicado de Tadeu Sarmento. Vale a leitura.