sábado, 3 de dezembro de 2016

A estética e o vinho

A arte da garrafa.

Poderíamos chamar assim ao produto derivado de um contínuo e por vezes longevo processo de produção.

Não há um bom vinho que venha de um lugar feio. A terra, o ar, o sol, a água - seja orvalho, rega, chuva ou suor.

O trabalho em si não envolve glamour. É sim fruto de pesquisas, contingências climáticas e, principalmente, experiência - tentativa e erro.

Isso é arte. É a capacidade humana de transformar seu entorno e criar um produto que nos faça questionar o próprio ar que ocupamos, os espaços entre ele, que nos emocione. 

Sem emoção não há arte, não há produção que vingue.  Não há vinho que valha a pena ser sorvido.

Skilt!

sábado, 15 de outubro de 2016

O que é literatura?

Terry Eagleton ainda não me respondeu. Nem me responderam meus professores nem o senso comum das redes sociais. Há vislumbres, porém…

Fiquei impressionado com a comoção quanto à escolha de Bob Dylan como representante da literatura para o comitê do Nobel. Impressionado por conta da recepção polarizada à premiação.

O que é literatura?

Em 1991, Neil Gaiman ganhou o World Fantasy Award de melhor conto com “Sonho de uma Noite de Verão”, edição nº 19 da série regular de Sandman. A história não era o que se considera Grafic Novel. Não!, era uma edição de uma série regular e mensal…

Shakespeare escrevia teatro e poemas. Hoje é o representante máximo da literatura em inglês. “Mas teatro é um roteiro, né?” É? Sam Shepard faz literatura?

Qual a intenção por trás das obras? Dylan compõe canções ou sua obra é poesia musicada? Podemos rotular de “literatura” apenas aquilo que é feito com “intenção literária”? (Uma intenção poética…) O leitor é quem deve descobrir isso? Qual o papel da autoria…

Que critério posso utilizar para separar uma composição que se considere literatura de algo feito apenas para entreter e ganhar dinheiro? As “imagens poéticas”, pelas quais Dylan foi saudado pelo comitê do Nobel? A pergunta inicial nem é essa, e sim “uma composição é literatura?”.

A intenção do autor está superada. Essa intenção é fictícia, não pode devorar a própria cauda. Escapa a quando os fólios de Shakespeare foram primeiro encenados (e lidos!), escapa a sejam lá quais fossem as críticas que ele intencionava à(na) Era Elizabetana, mas sinto que está presente na “imagem poética” do texto.

Li ontem a recepção do meio acadêmico, do meio crítico, do meio literário. Muitos doutores saudaram a escolha de Dylan, outros não. Muitos autores disseram que a literatura perdeu com essa premiação, outros ficaram felizes com a escolha. Penso ser legítima a crítica de que há compositores melhores do que Dylan, mas isso é fazer um desvio quanto ao objeto deste texto.

A quem a razão alimenta? Quem defeca o saber? Será que é assim?

Não enxergar um caráter literário em uma composição musical é diminuir a poesia - e há alguns escritores e acadêmicos que não consideram poesia como literatura -, é tirar a beleza do olhar humano, é fechar as possibilidades da expressão artística. A pergunta “o que é literatura?” deságua em “o que é arte?”, e ainda lerei a resposta de Tolstói a esta questão.

Dizer que isso ou aquilo não é literatura, sem um embasamento teórico, sem uma pesquisa profunda nas formas materiais, enfim sem uma vivência é, também, tachar a realidade por meio de um subjetivismo limitador. Creio que também seja uma forma de preconceito.

Márcia Tiburi e Rubens Casara escreveram, recentemente, que:

<<O preconceituoso é, na verdade, em um sentido um pouco mais profundo, alguém que tem muito medo, mas em vez de enfrentar seu medo com coragem, ele usa a covardia, justamente porque é impotente para enfrentar seu próprio medo. // O preconceituoso é, basicamente, um covarde.>> (fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2016/10/50931/).

Tenhamos coragem de questionar o que a literatura representa. No atual estado das coisas, ela não “é”, ela “está”, e as formas materiais de expressão, mais do que “meios de representação da arte”, nos levarão sempre a desafiar os limites do humano.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Trânsito

Não deixo de transitar
por vários mundos
e ficar escancarado
à espera de algo
que me arrebate

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Saída

Cedo ou não para falar sobre isso, sinto que é necessário.
É como um compartilhar para o bem do próximo.
Comecei um processo de análise. Foi apenas um par de sessão.
Pensei que eu entraria em um labirinto e encontraria sua saída.
As paredes altas convidariam à pressa e à insegurança, as curvas e meandros trariam uma expectativa e incerteza quanto ao que (não) se espera.
A SAÍDA seria como um portal rumo à liberdade. 
Não foi por aí.
Buscar a saída é vê-la espelhada, é adiar o encontro consigo.
Senti-me como sendo suturado; a agulha fura, corta e fere, mas vai, nessa tessitura, fazendo buracos nas paredes dos labirintos, entrelaçando aspectos que talvez nem fossem vislumbrados. 
Quem sabe eu me vista desse tecido? O processo é longo, sinto que é necesário.
E então a chegada e a saída dirão apenas respeito às duas certezas coletivamente compartilhadas, a vida e a morte.



quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Amor, maldição!

E existe amar no mau sentido? Não confunda amor e paixão, atração, maldição! Há amor sem paixão, atração sem paixão, paixão sem amor. Mas se pode amar mal, ah e como se ama, como mal se ama.

Não possuímos a simplicidade das plantas, volúveis e voláteis, levadas pelo vento para germinar quem se encontra pela frente. É uma cópula termal, folhagens balouçantes, ondeantes, raízes se entrelaçando, trepando umas nas outras com muita simplicidade e naturalidade.

Os animais... São os mestres. Fulano é um galinha. A outra, uma piranha. Aquele ali come que nem um coelho. E nós, enganados nesse antropomorfismo discriminatório. Os irracionais são tão simples, sabem o que querem, conhecem os riscos e investem em suas pulsões. 

Irracionais ou não, sempre temos de equacionar as pequenas variáveis. Um amontoado de sentimentos, sensações, beliscões e tapinhas de um intercurso cheio de interlúdios. Cheio de contas mal feitas e resultados sem explicações.

Amor, paixão, atração, tudo é um exercício intelectual para nós, humanas criaturas. O sexo selvagem é uma mentira inventada para enganar nossos hormônios, para nos despistar e nos fazer parar de pensar em sexo.

Mas que é bom, é.

E o amor? Filho dos deuses ou criação humana, desgarrada das convenções sociais mais hostis? O amor é fogo, ferida, doença, bálsamo, panaceia. Até agora, isto sim, um grande efeito placebo. O amor é o país dos viajantes perdidos, ninguém voltou para dele falar em definitivo. Há aproximações desalinhadas, conceitos tautológicos, tergiversações de uma má retórica.

Não desista, porém. Quem sou eu para falar sobre o amor?

Mas se o amor se explica, isso revela muita coisa. Fico com Osho quando ele diz que "as explicações são enganosas". E ele diz mais: "O perfeito amor dispensa demonstrações (...) não tem know-how", não precisa ser ensinado.

Ame, ache que ame, ame o amor e ame amar. Se sentir uma explosão inominável, aceite. O amor, afinal, é uma roleta russa.

domingo, 28 de agosto de 2016

Conto - O Duque


O DUQUE

Não era possível. Ele tinha fechado o jogo. Tinha certeza, venceriam por pontos. Colocou o duque lá, na ponta. O parceiro, encardido, enjoado, musicou e deu a vez. Ele sabia que ia fechar o jogo.

Bateram de Duque, que merda: Lá e Lô, e Cruzado! A carroça de Duque...

Pi .... Pi .... Pi .... Pi ... Pi ... Pi .. Pi . Pi Pi Pi Lá vem a Dona correndo. Pi Pi Pi .. Pi ... Pi ... Pi .... Pi ..... Lá vai a Dona correndo.

Parecia avisar que ele perdeu, mandou contar o tempo da última vez que ganhou. Piiii!!! Poderia ser a zombaria, sua zombaria particular, de quem não ganha há tempos. O Real perdido a cada rodada, mas o copo ganho sentado compensa a garrafa em pé. Afinal, ele era um dos Jogadores. Queria jogar...

Como ele não tinha percebido que eles tinham um duque? Ele tinha de ter contado, mas o parceiro não sabia que ele fingia contar as peças. Ficava assim, feito Terence, o mendigo, encostado na barraca de coco, todo de preto e espichado nesse sol, fingindo que não se interessava, fingindo que não pedia dinheiro, fingindo que ia embora. Fingia que contava. Mas Terence não jogava, não. A gente fingia e ele que não. Se escondia na frente de todo mundo e só falava quando falavam com ele. Levantava o braço e cumprimentava a maresia. Era feito a carroça de Duque não contada, uma pedra vesga, olhava e fingia que não olhava.

A Sofrência sacudiu a mesa e as peças se remexeram, pararam, caíram no colo. O Morto ficou ali, morto, as pedras equilibradas de cabeça prá baixo. Ele olhou pras suas peças, olhou pro morto, queria ressuscitar algumas, queria ganhar aquele jogo, queria ficar naquela estufa, mas o melhor era estar na água, se refrescar, na água quente da praia, se benzer no chuveiro salgado do sol. E se perdesse? Se perdesse era ruim, ruim mesmo, ele ia saber. Ia prá outra cerveja, de todo jeito iria, mas iria em pé, soltando graça para se fingir de graça, prá se desviar do quadrado do dominó para a roda da folia. O mar não dava liga, pros companheiros era só o banho antes do PE-15, da Integração...

Tava quente, e o cheiro fedia, fedia a sacolinha da prefeitura que deram pro lixo, prá consciência ambiental, pro homem de verde, para mim e para você. Prá que salvar tanta gente?, ele parecia pensar. Já tem um bocado. Em setenta eram noventa milhões em ação; agora, deve ser quase bilhão. Deixa como tá, se vai, vai. É só mais gente... Na casa dele eram cinco. E pensa que é falta do que fazer? Governo dando dinheiro, bolsa prá família... até certo ponto, quanto mais trabalho, melhor. E ele aqui, de seguro desemprego, olhando pras pedras, o riso escapou. “Tá rindo de quê? Joga nessa merda!”

Ele queria jogar e contava. Contava que tinha cinco pedras na mão. Calculava que era muito esforço para salvar o que só aumentava. É, no barraco o pirraia já dizia que Lula volta. E Dilma num veio também? E num foi? Feito a dona do Pi Pi Pi, quando vem, passa rápido.

A Dona volta. Pi .... Pi .... Pi ... Pi . Pi Pi PiPiPiPiPiPiPiPiPiPiiiPiiiPiiiPiiiii... A Dona cai. E eles bateram de novo. Lá e Lô, e Cruzado, e de Duque. Ah, não, os miseráveis tavam roubando. Esconderam a pedra quando mexeram. Com o olhar ele acusou o Morto, que ficou calado. O rebuliço foi geral! Os homens bateram suas camisas nas costas dele. “Vai ser pé ruim assim lá em casa!”

Piiiipiiiipiiiipiiiipiiipiiiipiiii

“É pé frio”, o outro gargalhava.

“Ei, porra, a Dona, mermão, a Dona!"

Aquilo veio como tsunami e se espalhou. Antes alegria, agora desolação, correria, a Dona no chão, ele olhando prás pedras, e eu já não. “Olha a Dona, pô!”

Ela tava deitada de costas, a camiseta azul arrochada, espalhada pela areia do calçadão, suada. Tava no exercício, era bom um regime, né? A viseira caída, o queixo tremendo.

Piiipiiipiiiipiiipiiiipiiipiiii

Já tinha gente demais, e eu vi mãos nos afastar, um círculo se formar e ele, de alguma forma lá dentro, pôs o boné prá trás e segurou os braços da Dona. Colocou a mão no centro do peito dela, era um prá cada lado, e segurou o pulso da coitada.

Então ele desatacou o relógio e jogou o bicho no chão. Olhou para mim e disse: “Pronto, quero ver agora!”.

domingo, 14 de agosto de 2016

Interfaces Holográficas (I)

Eu não tenho bílis ou mesmo serenidade suficiente para participar das discussões no facebook. Não porque eu pense que elas são inúteis. Acho que é uma questão de me poupar, mesmo. A intensidade e quantidade de reclamações aumentou exponencialmente diante dos fatos políticos. Quero evitar um julgamento sobre a utilidade desses posts. Apenas penso que caiu um véu quanto ao estado de ilusão em que muitos se(nos) encontravam(os) a respeito do Brasil e de sua força, de seu multiculturalismo, de sermos um povo de peito aberto. Isso é pontual e contingente. Ainda somos o país do “jeitinho” e da “lei da vantagem”. Se aquele comportamento tem um lado positivo, de desemperrar uma máquina ineficiente, este apenas está preocupado com ganhos materiais. O que vejo são discriminações várias (contra as mulheres, de teor sexual, de teor político, intelectual etc.). O Outro é um monstro e há de ser imposta a ele a vontade que se defende do desconhecido, do abuso pela ignorância. O meu lado analógico também é responsável por um certo distanciamento dessas discussões. Desde muito novo convivo com computadores e com pessoas que dominavam essas máquinas, mas em mim pairava um ar de fascinação, e não de curiosidade prática, isto é, eu gostava de mexer, mas não de aprender a partir desse contato. Pois minha interface holográfica com as redes sociais ainda é limitada. Enxergo que muitos conhecidos e amigos vivem nas redes sociais. Eles trabalham, cozinham, estudam etc. e estão sempre conectados. Há uma bolha de isolamento, mas uma vida cibernética intensa, a holografia do espírito que habita a máquina, as conexões, zeros e uns que preenchem a tela dos pensamentos antes retidos para si, antes postos em diários e sei lá mais o quê (não quero especular tanto sobre isso, e a mesa de um bar ou café sempre é um ponto comum de união). Eu mesmo falaria uma porrada de coisas, reclamaria sobre a monetização da vida, a necessidade de se ganhar e se ganhar mais, de ter e de reter, o crepúsculo dos ídolos da esquerda, a vampirização imposta aos brasileiros pelos que estão atualmente no poder, a derrocada de nossas instituições e do espírito político de solidariedade, mas eu decidi que a via é o melhoramento individual. É agir, ainda que de forma submersa e subversiva, contra e a favor de mim mesmo, visando a um ideal ético que ainda não tenho, mas sem deixar de me descobrir no meio do caminho. Há alguns estalos na consciência cujas origens são para mim nebulosas. Inconsciente? Esses mecanismos ainda me são desconhecidos. Outra interface holográfica, porém, pode ser encontrada na própria existência. Se a mente tem uma origem externa ao corpo ou não, essa “transformação” operada na e pela natureza apenas nos devolverá à ordem das coisas. E que djabos de ordem é essa? Creio na Física Quântica muito mais do que em Javé (apesar de pouco saber sobre os dois - aquela por falta de estudo, este por não levar tanto em consideração as opiniões humanas nos livros ditos sagrados). Somos um pontual colapso quântico em eterna energia, uma holografia, portanto, e a manifestação nas redes sociais pode ser, por isso, um tanto reveladora, pelo que não é dito, quanto tenebrosa, porque amor e carinho parecem ser moedas de troca e publicidade individual, na maior parte dos casos. As exceções são inúmeras, sim. É sempre bom compartilhar bons momentos, mostrar alegria, respeito mútuo. Por outro lado, o simples desabafo - como esse texto bem pode ser caraterizado, eu sei - pode ser mais revelador do que se imagina.. Há muito penso que a melhora de todos depende da atitude de cada um. Espero poder trabalhar isso melhor em mim e estar à disposição para ajudar, tanto profissionalmente quanto carinhosamente, quem precise. Mas e como eu farei isso? Eu!?, “Eu sou o Batman!”

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Amargo a Setenta *


No centro da cidade a terra é definida pela água. São meandros, canais, braços de rio com desejo de mar, um mosaico de ilhas e aterros de uma agitação urbana. Pés caminham sobre locais de batalha, e artefatos históricos se escondem sob o pavimento. Monumentos em homenagem à defesa e à segurança são cercados pela modernidade onde antes era mar e arrebentação.
Caminhei entre os santos - de Santo Antônio a São José - com cautela, por causa da hora, mas certo de que o frescor da noite me afastaria de pensamentos desagradáveis.
Número 70 da Rua da Praia, foi o que me disseram. “Amor a 70”, diz a placa. Uma maçã desbotada sobre um coração não menos gasto. O suficiente. A morte a 70 é o que trago.
A madeira da escadaria é seca, empoeirada, sulcada no centro. Rangeria o eco solitário dos meus passos.
Um puteiro com seus segredos, paredes descascadas e espaços entre cantos preenchidos com promessas de um vislumbre. Pelo espelho duplo eu via corpos se tocarem, se trocarem, espalhados pela cama. Um clichê de cetim, brilho e reflexos filtrava a luz diáfana das lamparinas sobre o toucador. Eu assistia e resistia ao impulso de fazer parte dessa onírica melodia. Queria fugir sem me retirar, aplacar a angústia sem tocar na ferida, morder o chocolate sem retirar o delicadíssimo papel que o embrulhava.
Dezoito reais e noventa e nove centavos por cem gramas de chocolate amargo a setenta por cento. É bem mais do que eu preciso para uma só noite. Já não é uma excentricidade gostar desse tipo, mas um sorriso amigável, e à vista, é sempre bem-vindo.
Guardo a barra no bolso interno do meu casaco e volto a olhar pelo vidro. Os lençóis caem em cascata pelo chão. Ele, deitado, se recosta à fina parede, sua mão procurando um cigarro aceso que repousa no cinzeiro de metal. O tesão bateu mais forte, pois a cinza pende sob o efeito da gravidade e a brasa come, devagar, o papel seda.
Ela é magra, pernas compridas e finas bem desenhadas. Os ossos da pélvis são salientes, e seus seios preenchem o ar com suavidade e um viço juvenil invejado por muitas. A maquiagem pesada, à meia luz, torna incerta sua idade. Seu cabelo tem um corte engraçado, marca o rosto redondo e ossudo, e seu lábio inferior parece se fender quando ela sorri. Ela gira nos calcanhares, com um leve tremor. De onde estou não consigo ver o que está fazendo, mas logo ela deve trazer uma bandeja velha, porém bem cuidada, com pratos fumegantes e um par de drinques coloridos. Além da amarga sobremesa. O serviço fora entregue. Eu abro os olhos e paro de imaginar o que teria ocorrido naquela alcova.
Na verdade estou sentado. Sentado sobre uma das velhas e polidas pedras de lastro de navio que adornam as calçadas do centro da cidade, buscando conter meus pés que não conseguem se firmar sobre a sulcada superfície da rua, ainda mais porque molhada.
Eu me afasto quando escuto os primeiros gritos roucos e vozes estridentes. Chamariam o Samu? Acho que não. O que alguém como ele estaria fazendo ali?
À noite, o entorno do mercado contrasta a ebulição da feira diurna. Eu ouço vozes perdidas na rua deserta.
Sinto-me abundante, a plenos pulmões. Apenas os vapores são sentidos, formam uma crosta sobre as paredes e lajes dos antigos edifícios, cujas portas parecem apenas querer comércio. Dividem espaço com os moradores da região que, deitados sobre as calçadas, tentam fugir do vento quente trazido pela maresia.
Não há porque me preocupar com os restos de ontem, não há porque desfilar um conjunto de intenções presumidas, um salto no escuro dos acontecimentos. Eu queria era poder conseguir um grande furo e mandar parar as prensas, mas, no meu negócio, a fama é restrita. Deve ser acessível apenas aos que importam, e estes já se foram. Se você quiser atenção, não siga meus passos. Mas você quer. Acaba dando com a língua nos dentes. Quer falar, quer que o outro saiba quem você realmente é, quer dividir com o mundo as maravilhas de que é capaz. E o mundo é cruel com tipos como eu.
Não deixe que gostem de você, mas seja agradável. E, se você for curioso como eu, estude. Estude muito, ocupe seu tempo, faça alguns trabalhos manuais, aprenda alguns idiomas, viaje. Conheça novas pessoas longe de onde você mora. Frequente clubes de swing por prazer e não apenas profissionalmente, como eu. Há momentos em que a discrição ajuda. E ser solitário é chamar atenção. Tenha pessoas a seu redor, mas fique quieto. Eles querem um trabalho limpo e dão as diretrizes. Sempre sabem que órgãos a artéria principal alimenta. É uma questão de aprendizado, de erros e acertos, de aperfeiçoamento e constante purificação.
Olho para trás e vejo a ambulância chegar para atender a vítima de parada respiratória. Chamaram o Samu. Era alérgico, coitado, é o que sairá no laudo do IML.
Sim, eu voltarei a esse clube. A proprietária é bem discreta.
“Moço, moço”, sinto um puxão na perna e um tilintar de moedas, “me dá um dinheirinho”. Algumas moedas vão do meu bolso ao saco de lona puída que ela carrega. Dou o restante do chocolate, também. Vejo que ela o divide em dois e o joga dentro do saco. Alguém tem de ensiná-la a sobreviver. Primeiro, é de madrugada; depois, está tudo fechado; terceiro, quem arrecada dinheiro a essa hora? Ela se afasta em silêncio e balançando o saco enquanto anda. A vida ensina.
Agora eu giro nos calcanhares. Corro em direção à menina e a seguro bruscamente, deixando-a momentaneamente assustada. Para amenizar a situação, converso com ela em um patuá difícil de ser entendido. Ela se abraça ao saco e me olha com olhos capitalistas. Está prestes a agir em legítima defesa de sua propriedade turbada quando eu lhe estendo uma nota de dois reais novinha. Seus olhos se arregalam ainda mais. Eu teria achado isso impossível momentos antes, quando lhe dei o chocolate, que agora ela me devolve após uma justa e difícil negociação. Algo tão banal quanto lhe devolver a vida – “Amorte a 70”. Por hoje não mais. É uma questão de aprendizado, de erros e acertos, de aperfeiçoamento e constante purificação.

* Esse conto foi um dos vencedores do concurso de Literatura do Tribunal de Justiça de Pernambuco em 2015.
Em tempo: sou aluno de Sidney Rocha, mas produzi esse conto antes das primeiras aulas com o mestre, senão teria aplicado as edições que quis posteriormente fazer. Por honestidade intelectual, segue o conto como fora publicado.


domingo, 17 de julho de 2016

Orgulho, tolerância, aceitação

Em meio à comemoração do Pride e a Paradas da Diversidade, minha timeline nas redes sociais ficou lotada com um chamamento à tolerância, do qual fui adepto. Até que umx benditx (e sinto muito, se for meu conhecido, esqueci quem foi que manterei no anonimato), questionou a tolerância enquanto comportamento ao qual o Outro deve se adequar. Isto é, a nossa tolerância não é senão um aviso que damos para dizer que - “olha, eu te aceito, vai, fica aí com essas tuas reivindicações, mas não incomoda, não cruza a linha”.
E aqui me valho dos ensinamentos do budismo, não como religião, e sim como filosofia de vida, em que suas (quatro nobres) verdades, ou saccāni, são uma síntese dessa filosofia.
A vida é dukkha - a vida é sofrimento.
A causa do sofrimento são os desejos? Não, é a insatisfação, e essa é a causa dos desejos.
Há uma saída dessa vida de sofrimentos causados por desejos não atendidos.
A saída é o Nobre Caminho Óctuplo, consistente em se ter: 1. visão correta; 2. intenção correta; 3. fala correta; 4. ação correta; 5. meios de vida corretos; 6. esforço correto; 7. plena mentação correta; 8. concentração correta*.
“Mas fazer isso é querer que o Outro se adeque a um comportamento alheio” -- para por aí, my friend. Buda dizia que tudo isso adviria da experiência ou da súbita iluminação. Não há imposição a ninguém. Ele apenas ensinou para quem quis ouvir, em seu respeito ou por tolerância (sim, por tolerância, mesmo, pois na época havia essa aceitação velada a qual iremos superar um dia) a ele e a seu grupo de monges pedintes, e sempre persuadiu seus discípulos a não acreditarem simplesmente no que ele dizia. Se aquilo tocasse o coração do bhikkhu ou da bikkhuni, que eles seguissem em frente, mas, em caso de dúvida, a experiência faria a prova.
Vamos colocar isso em prática? Eu me recito isso todo dia, desde que comecei a ter mais interesse sobre assuntos religiosos, aos 14 anos, e sinto que, se eu não tivesse buscado um norte ético, teria feito muito mais asneiras do que já fiz.
A religião foi uma ponte para filosofias de vida diversas. Antes havia essa busca pelo sagrado, pelo outro lado; agora, penso nesse comportamento ético, nessa senda de respeito e amor, de solidariedade e união entre as pessoas. Já o religioso se manifesta, para mim, em práticas -- deixa pra outra postagem!
Não tenho como teorizar melhor, sobre esse aspecto prático ao qual Buda se referiu, do que Herman Hesse em seu Sidarta. Convido-os à leitura. A uma releitura, a um compartilhar das páginas e dos afetos. Sidarta não é o Gautama (apesar de encontrá-lo em uma cena rica de significados), mas também é um questionador, alguém que procura algo além de si próprio em meio à miséria do seu povo, alguém que deixa sua família e lar para conhecer o mundo, para descobrir a inseparatividade em meio à diversidade.
Mas voltemos à tolerância. Ser tolerante é ter desejos e insatisfações, maquiagem frente às diferenças.
Devemos simplesmente respeitar. Pensar o respeito como o fim das normalidades. Pode ser que haja comportamentos mais comuns, em uma gama mais ampla, mas normal… normal é um caminho à tolerância, a continuar a moenda, à separatividade.
Possamos manter a porta aberta à inseparatividade em meio à diversidade, e pensar em ressignificar a palavra tolerância para mantê-la longe de nossos discursos individuais e das práticas sociais e grupais de nossas elites simbólicas.

*Dessa última podemos extrair os conceitos de Samādhi, que leva ao estado de Jhāna ( no páli, ou Dhyāna no sânscrito, ou Ch’an no budismo chinês, ou Zen no budismo japonês), que por sua vez é um estado de concentração de plenitude ou atingimento de uma absorção meditativa completa

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Um livro Submerso

Acabei de ler um livro diferente. Da editora Darkside Books, cujo trabalho de editoração é impecável, mas não me atrai pelo seu catálogo (muitas adaptações de filmes B e séries de fantasias “volumétricas” a rodo).
O livro é A Menina Submersa - Memórias, cuja autora, Caitlín R. Kiernan, foi ganhadora do prestigiado prêmio Bram Stoker.
Cheguei a ele ao pesquisar sobre um ensaio de Ursula K. Le Guin, pois o Google Books me levou a uma página do livro em que esse ensaio é citado pela narradora.
A narradora - India Morgan Phelps (Imp, “diabrete”) - tenta passar para o papel episódios de sua vida que se perderam em meio a crises psicóticas . Isso é entremeado a um passado familiar trágico, a histórias de contos de fadas que são fantasmas, a assombrações, histórias vívidas e reais naquele universo. E arte, muita arte.
E o universo da obra é rico, nos emociona, “verídico e factual”, apesar de as múltiplas vozes de Imp nos enganar, e se enganar também.
(O livro me transportou a outro, Fernanflor, sobre o qual também postarei).
A narrativa não é linear, e isso apenas torna a obra mais rica. Estamos na mente da narradora, e os acontecimentos são recortados com histórias do seu passado e outras que ela descobre ao tentar montar um quebra-cabeças de um período em que esteve em frangalhos.
O estilo da autora é fluido, lírico, mas por vezes senti uma forçação de barra atribuir a Imp um conhecimento enciclopédico sem lastro (o da autora é vasto, eu soube depois).
É uma obra de fantasia, de fantasmas, daquilo que habita nossa mente e pode, sem aviso, tentar nos devorar. Os admiradores de HP Lovecraft vão se identificar com muitas passagens. Uma das tramas paralelas que Imp tenta desvendar é bem lovecraftiana, pois diz respeito a um culto a “poderes submersos” (não quero falar mais, senão estrago).
As referências da autora são muitas, não se resumindo ao autor dos mitos de Cthulhu. Joseph Conrad, Herman Melville, Albert Perrault, Neil Gaiman e outros.
Vale a leitura.

Em tempo, a tradução foi feita por duas pessoas, mas, só para exemplificar, há erros básicos: em um momento, Imp (que usa uma máquina datilográfica), reclama de dores nas mãos e o texto aponta que “essas chaves são grudentas e precisam de óleo” - quando deveria se referir a teclas (que também é keys); em outro momento, Imp diz que esmurrou sua namorada e a deixou com um olho preto, mas o equivalente de black eye em português é “olho roxo”. Bom, sou chato pra atento a essas coisas, fazer o quê? A tradução, fora é isso, é massa, muito competente.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Three kinds of you

Há pessoas que, quando o contentamento não lhes é presente, parecem estar sempre irritadas; com um gancho a suspender suas testas; um humor sarcástico fora de contexto; ou apenas um olhar vago, mas cheio de interrogações.

Há pessoas que são como aquelas estrelas a orbitar buracos negros: irradiam sua luz e exercem um imenso poder de atração.

Algumas têm na autoridade o buraco da fechadura. Melhor, a combinação de um cofre. Não adianta a força bruta, métodos de invasão sofisticados, pois isso, com maior ou menor grau de pressão, tornará o depósito inútil. Apenas a senha correta dará acesso ao interior sem danificar o objeto.

Engana-se quem pensa que as primeiras são egoístas ou misantropas. A alegria que elas irradiam é genuína, e não é só por elas: têm no prazer do outro uma satisfação plena, retumbante. Estão a escrutinar o ambiente, vagam sobre as coisas, as pessoas, atentas, antenadas, e não admitem falsidade ou corrupção.

As segundas tendem a se irritar quando o “objeto” de sua interação muda o foco. A gravidade é inexorável, e, mesmo sem ter consciência do seu próprio brilho, acreditam que essa luz, venha ela de onde vier, é eterna.

As últimas aprenderão que a vida em sociedade cria barreiras, normas, limites que visam facilitar uma melhor convivência. O tempo passa e o cofre sofrendo a ação natural dessa passagem. Muitas combinações erradas ativarão mecanismos de segurança, e algumas vezes tentarão invadi-lo à força, com ou sem sucesso. Por vezes, porém, a autoridade será soberana, e a obediência será imposta. É o caso de um filho que não quer ficar preso ao cinto de segurança da cadeirinha do carro. Contra isso não há argumentos.

De alguma maneira, noto que minha filha tem um pouco desses três tipos (os quais já albergam tantos outros...). Ela é muito nova, não tenho como fazer valer, com segurança, o que aqui escrevo. O tempo – que é como a gravidade, nos faz cair no futuro – é quem dirá.

 É a Valentina que eu dedico este texto.

O desafio de Prometeu





Então somos arautos de uma nova era.A singularidade é uma demanda, a e interação humano/máquina cederá espaço para uma intercessão. Que consciência habitará esse… componente(!?)?Um ser capaz de empreender jornadas rumo aos confins do espaço,a viajar por espaçotempos e a residir entre os espaços.A glória!Que glória?Julgo necessidade. Glória é o que se busca por meio do poder,poder que se retroalimenta de sua incapacidade de divisar o futuro,mas que se de domínio presente. Contingente.
Em tempo. Escrevi esse texto e logo após fui assistir a Ex Machina.
Sem relação (aparente).




sábado, 25 de junho de 2016

O grande lance




Eu busco não o significado, que às vezes esconde uma multiplicidade e uma inconstância sazonal, mas antes a essência das coisas. Vivemos sob um manto de afagos externos, máscaras sociais e convenções que por vezes põem termo (ou paralisam) quem verdadeiramente somos. A verdade, porém, é que nem sempre estamos preparados para a verdade. Creio que sejamos aventureiros que a buscam sempre, mas sabemos que a grande jornada é a busca em si. Há mistérios que só são o que são por não serem nada, apenas mistérios. O grande lance é viver os acontecimentos como uma perene descoberta.

E a essência, que significados ela traduz?