quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Amargo a Setenta *


No centro da cidade a terra é definida pela água. São meandros, canais, braços de rio com desejo de mar, um mosaico de ilhas e aterros de uma agitação urbana. Pés caminham sobre locais de batalha, e artefatos históricos se escondem sob o pavimento. Monumentos em homenagem à defesa e à segurança são cercados pela modernidade onde antes era mar e arrebentação.
Caminhei entre os santos - de Santo Antônio a São José - com cautela, por causa da hora, mas certo de que o frescor da noite me afastaria de pensamentos desagradáveis.
Número 70 da Rua da Praia, foi o que me disseram. “Amor a 70”, diz a placa. Uma maçã desbotada sobre um coração não menos gasto. O suficiente. A morte a 70 é o que trago.
A madeira da escadaria é seca, empoeirada, sulcada no centro. Rangeria o eco solitário dos meus passos.
Um puteiro com seus segredos, paredes descascadas e espaços entre cantos preenchidos com promessas de um vislumbre. Pelo espelho duplo eu via corpos se tocarem, se trocarem, espalhados pela cama. Um clichê de cetim, brilho e reflexos filtrava a luz diáfana das lamparinas sobre o toucador. Eu assistia e resistia ao impulso de fazer parte dessa onírica melodia. Queria fugir sem me retirar, aplacar a angústia sem tocar na ferida, morder o chocolate sem retirar o delicadíssimo papel que o embrulhava.
Dezoito reais e noventa e nove centavos por cem gramas de chocolate amargo a setenta por cento. É bem mais do que eu preciso para uma só noite. Já não é uma excentricidade gostar desse tipo, mas um sorriso amigável, e à vista, é sempre bem-vindo.
Guardo a barra no bolso interno do meu casaco e volto a olhar pelo vidro. Os lençóis caem em cascata pelo chão. Ele, deitado, se recosta à fina parede, sua mão procurando um cigarro aceso que repousa no cinzeiro de metal. O tesão bateu mais forte, pois a cinza pende sob o efeito da gravidade e a brasa come, devagar, o papel seda.
Ela é magra, pernas compridas e finas bem desenhadas. Os ossos da pélvis são salientes, e seus seios preenchem o ar com suavidade e um viço juvenil invejado por muitas. A maquiagem pesada, à meia luz, torna incerta sua idade. Seu cabelo tem um corte engraçado, marca o rosto redondo e ossudo, e seu lábio inferior parece se fender quando ela sorri. Ela gira nos calcanhares, com um leve tremor. De onde estou não consigo ver o que está fazendo, mas logo ela deve trazer uma bandeja velha, porém bem cuidada, com pratos fumegantes e um par de drinques coloridos. Além da amarga sobremesa. O serviço fora entregue. Eu abro os olhos e paro de imaginar o que teria ocorrido naquela alcova.
Na verdade estou sentado. Sentado sobre uma das velhas e polidas pedras de lastro de navio que adornam as calçadas do centro da cidade, buscando conter meus pés que não conseguem se firmar sobre a sulcada superfície da rua, ainda mais porque molhada.
Eu me afasto quando escuto os primeiros gritos roucos e vozes estridentes. Chamariam o Samu? Acho que não. O que alguém como ele estaria fazendo ali?
À noite, o entorno do mercado contrasta a ebulição da feira diurna. Eu ouço vozes perdidas na rua deserta.
Sinto-me abundante, a plenos pulmões. Apenas os vapores são sentidos, formam uma crosta sobre as paredes e lajes dos antigos edifícios, cujas portas parecem apenas querer comércio. Dividem espaço com os moradores da região que, deitados sobre as calçadas, tentam fugir do vento quente trazido pela maresia.
Não há porque me preocupar com os restos de ontem, não há porque desfilar um conjunto de intenções presumidas, um salto no escuro dos acontecimentos. Eu queria era poder conseguir um grande furo e mandar parar as prensas, mas, no meu negócio, a fama é restrita. Deve ser acessível apenas aos que importam, e estes já se foram. Se você quiser atenção, não siga meus passos. Mas você quer. Acaba dando com a língua nos dentes. Quer falar, quer que o outro saiba quem você realmente é, quer dividir com o mundo as maravilhas de que é capaz. E o mundo é cruel com tipos como eu.
Não deixe que gostem de você, mas seja agradável. E, se você for curioso como eu, estude. Estude muito, ocupe seu tempo, faça alguns trabalhos manuais, aprenda alguns idiomas, viaje. Conheça novas pessoas longe de onde você mora. Frequente clubes de swing por prazer e não apenas profissionalmente, como eu. Há momentos em que a discrição ajuda. E ser solitário é chamar atenção. Tenha pessoas a seu redor, mas fique quieto. Eles querem um trabalho limpo e dão as diretrizes. Sempre sabem que órgãos a artéria principal alimenta. É uma questão de aprendizado, de erros e acertos, de aperfeiçoamento e constante purificação.
Olho para trás e vejo a ambulância chegar para atender a vítima de parada respiratória. Chamaram o Samu. Era alérgico, coitado, é o que sairá no laudo do IML.
Sim, eu voltarei a esse clube. A proprietária é bem discreta.
“Moço, moço”, sinto um puxão na perna e um tilintar de moedas, “me dá um dinheirinho”. Algumas moedas vão do meu bolso ao saco de lona puída que ela carrega. Dou o restante do chocolate, também. Vejo que ela o divide em dois e o joga dentro do saco. Alguém tem de ensiná-la a sobreviver. Primeiro, é de madrugada; depois, está tudo fechado; terceiro, quem arrecada dinheiro a essa hora? Ela se afasta em silêncio e balançando o saco enquanto anda. A vida ensina.
Agora eu giro nos calcanhares. Corro em direção à menina e a seguro bruscamente, deixando-a momentaneamente assustada. Para amenizar a situação, converso com ela em um patuá difícil de ser entendido. Ela se abraça ao saco e me olha com olhos capitalistas. Está prestes a agir em legítima defesa de sua propriedade turbada quando eu lhe estendo uma nota de dois reais novinha. Seus olhos se arregalam ainda mais. Eu teria achado isso impossível momentos antes, quando lhe dei o chocolate, que agora ela me devolve após uma justa e difícil negociação. Algo tão banal quanto lhe devolver a vida – “Amorte a 70”. Por hoje não mais. É uma questão de aprendizado, de erros e acertos, de aperfeiçoamento e constante purificação.

* Esse conto foi um dos vencedores do concurso de Literatura do Tribunal de Justiça de Pernambuco em 2015.
Em tempo: sou aluno de Sidney Rocha, mas produzi esse conto antes das primeiras aulas com o mestre, senão teria aplicado as edições que quis posteriormente fazer. Por honestidade intelectual, segue o conto como fora publicado.


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