domingo, 20 de junho de 2010

Vodca e Literatura em um conto de Artur Lins

Este conto, Na Zdorovye, foi publicado no blog do Urros Masculinos em 2010. O link é este, mas você pode ler o conto aqui:

NA ZDOROVYE*

Sou chamado às claras por uma tontura persistente. Estou a três centímetros do travesseiro. O cobertor está engomado e dobrado ao meu lado. Minha bunda aponta para cima; minhas pernas, curvadas até a altura da barriga, e minhas costas oferecem uma pista de pouso para mosquitos indesejáveis.

Faz frio, muito frio, mas o que o corpo percebe a mente não quer processar. Sinto apenas o fedor etílico entornar por todo o quarto.

O braço tateia para os lados e de repente parece uma mangueira sem controle: dormente.

Estico as pernas e desabrocho em minha cama. Pego o lençol com a outra mão e faço do meu canto um sarcófago, enrolado como uma múmia. (A esperança de um sono tranqüilo cede à necessidade de um mijo insistente)

… que não quer parar e pinta o chão com a cor do sol. Bom, pinho sol amanhã de manhã. Não sei se tenho, mas vê lá, quem sabe?

Volto e penso naquela bundinha empinada… não, estou só. Delirante, companheiro. Que a vodka desperte em ti a pujança de um ardor ancestral no céu da boca. Só as de péssima qualidade. Deitada, arrepiada, tremendo de frio… e eu só olhando. A carne na cama. A vodka no congelador. Mas eu tô com frio. E ela não está lá. Já foi, não sei. Foi quando?, passou. Entornei de repente…

Eu sento. E só percebo a madeira embaixo de mim quando me deito. O corredor se fez notar em sua nuance familiar. Por esse ângulo demorou, mas nada que vinte anos de convivência imobiliária não resolvam.

Ficarei aqui, prostrado. Intitularei este momento “a razão de não voltar pra cama”. Ela não está lá.

(* saúde em russo)

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Fábio Saito, um médico sem fronteiras


Meu amigo do colégio Fábio Saito está no Congo, na "República Democrática do Congo", antigo Zaire.

Fábio já esteve antes na África. Passou quase um ano viajando pelo continente e conhecendo, como um mochileiro, a realidade daquela terra.

Ele foi detido por autoridades locais, tirou belas fotos, conheceu um povo simpático e melancólico, passou por terras em conflito e voltou ao Brasil.

Fábio é formado em Medicina pela UFPE, é mestre em Infectologia (passou muito tempo na Amazônia, mas isso é outra história) e foi médico de Saúde Familiar em diversas cidades do interior brasileiro. Sua meta: juntar dinheiro e voltar à África.

Lembro-me quando éramos do primeiro ano científico (hoje Ensíno Médio) e, juntos, na cantina, Fábio disse a mim e a outro amigo que queria ser um médico sem fronteira. E eu lá sabia o que era isso.

Ele foi aceito na Médicins Sans Frontières (página oficial aqui) e, no início do ano, foi à Bélgica para um briefing, pois seria enviado ao Congo Belga. É na vila de Niangara, no nordeste do país, onde ele exerce sua profissão, em uma cidade rodeada pela guerra civil, um lugar que é um asilo para os refugiados e feridos das batalhas.

Aqui está um relato, do proprio FS, sobre o local:

"A vila é no meio do nada, na beira de um rio, e nao tem televisao, cerveja (e nenhuma bebida alcoolica nem nenhum produto industrializado!!), eletricidade, coca cola, estradas ou internet. so tem um carro na cidade, q chegou depois de dois dias num projeto de caminho da cidade mais proxima, a uns 120km. imagina a estrada como é boa. o msf tem um gerador la e se manda email de vez em quando (mas nao tem internet pra navegar) por um BGAN (um aparelho q fica conectado por satelite). entao pode ser q demore um bom tempo ate eu mandar um email. a conexao é bem ruim. la o hospital é completamente isolado, nao tem quase nada de equipamento e nao tem pra onde transportar os pacientes. nao tem outros medicos. entao ou se resolve as coisas ou se deixa acontecer. da um pouco de medo. o lugar é infestado de malaria, doenca do sono, peste (inclusive pneumoica), oncocercose e tem 25.000 refugiados de guerra pq tem conflitos todas as semanas nos arredores (mas nunca la). o problema é o grupo ugandense LRA q atua na regiao e comete uns crimes (uns 3 ou 4 por semana). mas o msf é otimo e mt organizado. eles têm meio mundo de gente das "logistica" trabalhando para evacuar a gente caso exista a minima possibilidade de um ataque na nossa cidade. tem varios planos de evacuacao e tudo. Acho q vai ser uma otima missao."

Fábio me enviou muitas fotos. Algumas eu exponho aqui.

Um grande abraço, Fábio. Espero que você volte logo.


sábado, 5 de junho de 2010

O Profeta de pés descalços

(Não leia se você não viu)

Há tempos um roteiro cinematográfico não conta tão bem a história da ascensão de um chefe do crime organizado. E de forma original. O Profeta, do diretor Jacques Audiard (e co-roteirizado por Thomas Bidegain), faz um paralelo entre a vida do último profeta islâmico Maomé e de Malik El Djebena (Tahar Rahim), jovem de dezenove anos condenado a passar seus próximos seis anos em uma prisão dominada pela máfia corsa.

Malik tem de, primeiramente, sobreviver. E, para isso, deve se associar a um dos grupos dominantes: os corsos ou os árabes. O fato de Malik ser árabe não resolve simplesmente a equação. Ele quer ficar só, quer vencer nos seus termos, mas tem seus tênis roubados no primeiro dia em que sai para o pátio. O líder dos corsos, César Luciani (interpretado por Niels Arestrup, que roubou a cena), aproveita-se dessa fragilidade de Malik para usar o novato em um dos seus esquemas de guerra, o assassinato de um árabe rival.

Além de tentar sobreviver sendo escorraçado pelos mafiosos de César, Malik também é confrontado pela falta de identidade étnica. É descendente de árabe, falava esta língua e o francês, mas não sabe qual é sua língua materna, pois sua mãe é a oportunidade. Aprende italiano observando os corsos, porém é levado a entender que isso não importa, ele nunca será um mafioso, e sim um serviçal.

César, por uma questão política, vê seus aliados saírem da prisão. Esvaziado de poder, tem em Malik uma fonte para ideias e um alívio para a necessidade de impor sua autoridade.

Malik percebe que o futuro é a prisão, pelo menos o porvir, e é lá onde ele deve buscar ajuda. É lá onde ele aprende a usar os outros para obtenção do que almeja.

E talvez seja aí que o elemento fantástico (ou esquizoide) do filme aparece. Reyeb (Hichem Yacoubi), o preso morto por Malik, vem atormentá-lo do além. Ele é a ponte entre a jornada de Malik e a do profeta Maomé. É o Anjo Gabriel, traz a Palavra e o Fogo. É o único companheiro de Malik em sua solitária senda.

Maomé foi escorraçado ao abandonar o culto politeísta e ter passado a pregar o monoteísmo. Congregou uma comunidade de nômades unida apenas pelo idioma e pelos costumes mercantis. Casou-se com uma viúva e conquistou seus rivais. Era um grande comerciante e, impulsionado pelo seu natural interesse religioso, tornou-se um formidável pregador.

Audiard deixa claro que a palavra é um manancial para o poder, o despertar do intelecto. A partir do momento em que Malik aprende a escrever, anuncia ter o domínio de si próprio, mas não teme em dizer que faz o que é mandado. Ele se torna um mafioso em seus próprios termos, individualista, porém ciente de que esse jogo é um jogo de trocas, de alianças e respeito velado. Apenas quando ele se aproxima de pessoas que não estão no círculo de Luciani, como o Cigano (Redá Kateb) e o árabe Ryad (Adel Bencherif), o qual chama Malik de irmão (na antológica cena final, Audiard deixa claro que a família ainda é o alicerce e o ponto fraco do mafioso), é que o protagonista encontra outros meios para a sobrevivência.

A história valeu-se do gênio de Audiard por trás das câmeras, sempre perto do protagonista, testemunhando seus dramas e conquistas. O filme é dividido em atos apresentados através do que parece um buraco de fechadura. Apesar de longo, duas horas e meia de duração, o filme se sustenta sem entediar o expectador. As cenas de ação – cruas, mas não exageradas – são o ápice de uma tensão que vem sendo construída e pontuada pela trilha sonora de Alexandre Desplat (que aparece em poucos momentos), marcada pela ágil e perspicaz edição de Juliette Welfing (bem interessantes são as cenas onde Malik passa a ser os olhos e ouvidos de César, ou quando são mostradas as formas dos contrabandos entrarem na prisão, ou mesmo nas precisas cenas de ação).

O Profeta não é um filme de redenção. Se Malik é um garoto frágil e com olhar medroso ao entrar na prisão, com o passar do tempo ele apenas se torna um criminoso pior, ciente dos seus atos e do que é necessário fazer para “vencer”.