sábado, 5 de junho de 2010

O Profeta de pés descalços

(Não leia se você não viu)

Há tempos um roteiro cinematográfico não conta tão bem a história da ascensão de um chefe do crime organizado. E de forma original. O Profeta, do diretor Jacques Audiard (e co-roteirizado por Thomas Bidegain), faz um paralelo entre a vida do último profeta islâmico Maomé e de Malik El Djebena (Tahar Rahim), jovem de dezenove anos condenado a passar seus próximos seis anos em uma prisão dominada pela máfia corsa.

Malik tem de, primeiramente, sobreviver. E, para isso, deve se associar a um dos grupos dominantes: os corsos ou os árabes. O fato de Malik ser árabe não resolve simplesmente a equação. Ele quer ficar só, quer vencer nos seus termos, mas tem seus tênis roubados no primeiro dia em que sai para o pátio. O líder dos corsos, César Luciani (interpretado por Niels Arestrup, que roubou a cena), aproveita-se dessa fragilidade de Malik para usar o novato em um dos seus esquemas de guerra, o assassinato de um árabe rival.

Além de tentar sobreviver sendo escorraçado pelos mafiosos de César, Malik também é confrontado pela falta de identidade étnica. É descendente de árabe, falava esta língua e o francês, mas não sabe qual é sua língua materna, pois sua mãe é a oportunidade. Aprende italiano observando os corsos, porém é levado a entender que isso não importa, ele nunca será um mafioso, e sim um serviçal.

César, por uma questão política, vê seus aliados saírem da prisão. Esvaziado de poder, tem em Malik uma fonte para ideias e um alívio para a necessidade de impor sua autoridade.

Malik percebe que o futuro é a prisão, pelo menos o porvir, e é lá onde ele deve buscar ajuda. É lá onde ele aprende a usar os outros para obtenção do que almeja.

E talvez seja aí que o elemento fantástico (ou esquizoide) do filme aparece. Reyeb (Hichem Yacoubi), o preso morto por Malik, vem atormentá-lo do além. Ele é a ponte entre a jornada de Malik e a do profeta Maomé. É o Anjo Gabriel, traz a Palavra e o Fogo. É o único companheiro de Malik em sua solitária senda.

Maomé foi escorraçado ao abandonar o culto politeísta e ter passado a pregar o monoteísmo. Congregou uma comunidade de nômades unida apenas pelo idioma e pelos costumes mercantis. Casou-se com uma viúva e conquistou seus rivais. Era um grande comerciante e, impulsionado pelo seu natural interesse religioso, tornou-se um formidável pregador.

Audiard deixa claro que a palavra é um manancial para o poder, o despertar do intelecto. A partir do momento em que Malik aprende a escrever, anuncia ter o domínio de si próprio, mas não teme em dizer que faz o que é mandado. Ele se torna um mafioso em seus próprios termos, individualista, porém ciente de que esse jogo é um jogo de trocas, de alianças e respeito velado. Apenas quando ele se aproxima de pessoas que não estão no círculo de Luciani, como o Cigano (Redá Kateb) e o árabe Ryad (Adel Bencherif), o qual chama Malik de irmão (na antológica cena final, Audiard deixa claro que a família ainda é o alicerce e o ponto fraco do mafioso), é que o protagonista encontra outros meios para a sobrevivência.

A história valeu-se do gênio de Audiard por trás das câmeras, sempre perto do protagonista, testemunhando seus dramas e conquistas. O filme é dividido em atos apresentados através do que parece um buraco de fechadura. Apesar de longo, duas horas e meia de duração, o filme se sustenta sem entediar o expectador. As cenas de ação – cruas, mas não exageradas – são o ápice de uma tensão que vem sendo construída e pontuada pela trilha sonora de Alexandre Desplat (que aparece em poucos momentos), marcada pela ágil e perspicaz edição de Juliette Welfing (bem interessantes são as cenas onde Malik passa a ser os olhos e ouvidos de César, ou quando são mostradas as formas dos contrabandos entrarem na prisão, ou mesmo nas precisas cenas de ação).

O Profeta não é um filme de redenção. Se Malik é um garoto frágil e com olhar medroso ao entrar na prisão, com o passar do tempo ele apenas se torna um criminoso pior, ciente dos seus atos e do que é necessário fazer para “vencer”.

2 comentários:

  1. Em desobediência à ordem legal, comecei a leitura sem ter visto o filme, mas claro que você amarrou tudo com genialidade, seu texto me seduziu e agora a vontade de conhecer a obra é grande. O diretor é Francês, certo?

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  2. O diretor é francês, sim. Tenho muita vontade de ver de novo.

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