domingo, 4 de outubro de 2020

Sagrado e Profano - impressões sobre a Trilogia dos Brutos, de Ana Paula Maia

 Gosto das histórias de Ana Paula Maia. Talvez porque elas habitem o mesmo imaginário em que em mim habitam as histórias de samurais, cangaceiros e westerns. 

Um ambiente crepuscular entre a ordem e o caos, em que mais vale a honra do que a lei e em que, em alguns casos, a honra é a lei.

A ordem social, a figura do direito público e suas normas de conduta existem em todas esses cenários, mas quase sempre à margem. O exercício unilateral das próprias razões, mediado pela imposição da própria força é o que prevalece. Os dados rolam e a vida segue seu caminho. Mas grandes obras e grandes histórias apenas são possíveis com a lente privilegiada de uma autoria.  Ana Paula Maia escolheu a dedo seus protagonistas e foi pinçar fatos da vida em que aparentes tragédias são motivo ou consequência dos acontecimentos.


Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos

Já havia lido esse livro, creio que há uns dez anos.

A releitura foi uma oportunidade de entrar em contato novamente com a obra dessa super talentosa autora, e me descobrir um leitor mais maduro e exigente. O livro é um bom ponto de contato com a obra de Maia, pois ela escrevera outros dois textos anteriores — se não me engano (ainda não os li). 

Como tentei dizer, é obra de uma escritora em maturação, e em alguns momentos o narrador solta frases desnecessárias quando poderia mostrar o dito em ação ou mesmo omitir determinada sequência.

A poesia existe na vida desses homens limitados pela falta de oportunidades e que se movem com um senso de sobrevivência em meio à hegemonia dos outros. Quando há sonhos de algo além do que vivem, é uma visão trazida à beira da morte - "vá ver a neve" - ou ao se olhar para o céu, cujas nuvens poderiam até mesmo ser cortadas por um facão. 

Nesta passagem, Ana Paula Maia é de um lirismo assombroso:

"Às vezes, até as estrelas parecem fazer sombra. Mesmo mortas, insistem em ofuscar com seu insistente senso de infinito. E ao pensar nas estrelas, às vezes ele gostaria de ter uma escadaria para o céu. Para apagá-las com um sopro."

E, para esses homens, abandonados pelo mundo, a vida é mesmo um rápido estertor.

O que Gerson e Edgar Wilson, abatedores de porcos, não têm de "sociabilidade", ou a têm limitadamente, é compensado com quase um bromance de brutos, e uma contemplação de "fim de dia", mas que, em alguns momentos — e na soma desses momentos — mostra-se em demasia. Não chega a ser fastidioso, porque as imagens "captadas" por Ana é da alma dos seus personagens, e a coerência e o estilo são marcantes.


Na novela O Trabalho Sujo dos Outros, há uma aproximação ao que Bauman definiu como "a sociedade do descarte", pois vivemos para consumir, mas desde que haja uma obsolescência programada geral — das coisas, mas das pessoas também. Erasmo Wagner faz um dos trabalhos mais importantes para a sociedade urbana, e isso é bem marcante na história, ele tem consciência disso, apesar de sua melancolia; acredito que esse estado depressivo do personagem foi resultado do encontro do seu desejo por mais com a situação de miséria e apagamento na qual ele e seus colegas vivem.


Carvão Animal

Encontrei os opostos nesse texto de Ana Paula Maia, romance que encerra a trilogia dos brutos.

Na obra o fogo, e o carvão, produto de queima, é uma excelente metáfora para a vida e para a morte, e as histórias do romance são alegorias dessa jornada.

Os cenários do livro todos têm relação com o fogo: Corpo de Bombeiros, uma olaria, uma carvoaria, um crematório, uma mina de carvão que explode.

O único lugar que parece não queimar é a casa do bombeiro Ernesto Wesley, mas aí queima sim: o rancor pela morte da filha causado por um irmão que está preso; a raiva que a vizinha sente da cadela Jocasta; o calor de uma compostagem caseira etc.

No crematório "(o) carteado é religioso", um profano sagrado em meio a um mecânico e demorado ritual de cremação em uma funerária. Aqui há o verniz do respeito com os parentes dos mortos, que lançam parte das cinzas ao pé de roseiras bem cuidadas, enquanto que as sobras e cinzas não reclamadas são descartadas em um matagal que margeia a parte de trás da funerária, em meio à imundície acumulada e bichos oportunistas.

Palmiro, Ronivon (irmão de Ernesto Wesley), Geverson, Aparício, o coveiro, e JG trabalham em uma funerária especializada em cremação de corpos. São pessoas que, em bela síntese da autora, esperam pelos mortos para a vida prosseguir.

A gama de personagens de Ana Paula Maia, assim como "a maioria dos homens(,) é moldada a concreto. São duros feito rocha. Inquebrantáveis de espírito, torpes" (Carvão Animal, l. 1243)

Gosto do nome dos heróis de Ana Paula Maia - se bem que os chamar assim é um desrespeito à jornada deles: Edgar Wilson, Ernesto Wesley e Erasmo Wagner. Todos E W. Sim, tem um motivo, e conheço pelo menos o do primeiro: Edgar (Allan Poe) Wilson (do conto de Poe, William Wilson).


A autora não reduz a história a um determinismo naturalista, mas não nega a influência do meio - assim como eu também, como leitor, não a nego.


Peguei essa foto da Ilustríssima, em artigo de Joca Rainers Terron o qual li após a escrita dessas impressões; recomendo fortemente a leitura, pois nos fala da repercussão internacional da obra da autora e da vanguarda da sua literatura; ainda não li os publicados depois da trilogia aqui enfrentada, "mas vos digo, caso não saibais" - ela foi vencedora por duas vezes do Prêmio São Paulo de literatura, em 2018 e em 2019; antes de passar para a leitura dessas obras premiadas, quero ler "A Guerra dos Bastardos", de 2007 e "De Gado e Homens", de 2013 (há um ainda anterior - "O Habitante das Falhas Subterrâneas", de 2003, mas esgotado). Segue AQUI o link para o artigo do Joca Terron