sábado, 4 de julho de 2020

Impressões sobre Carapaça Escura

Impressões sobre Carapaça Escura,

de Frederico Toscano.

Patuá Editora, 96 páginas.


Eu acabara de ler Otelo, então estava rodeado por água - Veneza e Chipre - e no qual o principal assassinato é por sufocamento.

Em seguida, assisti, por três dias, à minissérie O Terror (The Terror), a qual adaptou o livro de Dan Simmons à telinha, e que reconta, de forma magistral, e com um toque de terror, a Expedição Franklin - em que o Comandante Sir John Franklin tentava descobrir e singrar a "Passagem Noroeste" entre o Atlântico e o Pacífico, este no Estreito de Bering.

Água, afogamento (a maioria dos marinheiros contratados antigamente não sabiam nadar, vai saber…), envenenamento, urso gigante, doenças e um escafandro…

Eu pensei em ler um livro de contos policiais no leitor digital, mas então me lembrei - acabei de me lembrar - de que havia separado este livro:


Muito mais do que atraído pela capa, a qual me provoca admiração estética e um certo calafrio (palavra usada pelo autor em sua dedicatória a mim), eu estava imerso em uma sensação de ser assimilado pelo que minha cidade - Recife - tem a oferecer em termos estéticos quando se trata de água, pavor e os demônios que habitam os pátios eclesiásticos.

Mergulhei, então, na leitura do livro.

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Nos dois primeiros contos me fascinou a linguagem usada pelo autor, com um vocabulário regional, delicioso… eu até parecia ver a pessoa falar ao meu lado.

Vi um pouco da vida que também é e foi minha: morando, quando criança, no limite oeste do bairro de Boa Viagem, minha rua era de barro, continuação da rua de uma favela, então havia um muro invisível que de vez em quando nós transpúnhamos… Ralar o joelho, pular muro dos vizinhos, voltar melado de barro para a barra da saia da mãe, isso teve… Teve também o mistério de uma casa que parecia ter um lago dentro de si, com uma jangada… bem, essa história vou contar depois.

Já na Avenida Boa Viagem, limite leste do bairro junto ao mar, vimos o outro lado, um decadente militar de classe média alta, com seus crimes e violência patriarcal escondidos pela caserna, faz uma descoberta junto ao quebra-mar que vai mudar sua vida, sendo, ao mesmo tempo, uma visita do passado.

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Essas histórias retiveram em mim uma sensação pueril de estranhamento quanto ao mundo, muito maior do que eu apreendera até aquele momento.

E, ainda, em termos de nota pessoal, e porque penso que fiquei contaminado com o "urso" que apareceu na série O Terror, senti que algumas das cenas muito bem mostradas, poderiam ficar mais na insinuação do que explicitadas - mas, repito, isso é um gosto estético que, penso, vai de encontro à proposta do livro, assumidamente de literatura fantástica. Prossigamos…

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Algo no livro que me encantou foi a escrita. Frederico teve um cuidado artesanal com a linguagem.

Frases como "Ascendeu devagar em direção à luminosidade tremulante e, resignado, deixou-se abandonar aos caprichos daquela vontade superior, qual mamulengo ao final do espetáculo", sobre a retirada de um escafandrista da água, no conto Carapaça Escura.

Uma assombração em uma pista de barro, sob a luz de uma lamparina e companhia do mato ao redor é "uma alvura suspensa na curva da estrada", e não adianta se afastar, pois a assombração continua lá, como "uma impressão pesando-lhe sobre a nuca", em A Estrada Dela.

Uma simples imagem que nos remete à vida e ao nascimento é transformada em um horror lovecraftiano, descrito, em O Abismo no Céu, "como uma placenta repleta de olhos e membros retorcidos".

Isso só demonstra uma patente transpiração, sem artificialismos.

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Se você gosta de literatura, leia; se gosta de literatura fantástica, leia.