sábado, 7 de novembro de 2020

Impressões e emoções sobre Território Lovecraft, de Matt Ruff

Matt Ruff é um escritor que conseguiu me deixar angustiado, nervoso, aflito, com raiva. 

E não foi porque um shoggoth apareceu e ameaçou devorar os heróis e heroínas do livro. As cenas as quais me refiro dizem respeito às "normas do pôr do sol", ao "guia rodoviário do viajante negro", às leis segregacionistas Jim Crow nos EUA, que duraram para além da década de 1960 -- e não era apenas no sul que havia segregação, pois  os democratas nos estados é que foram responsáveis pela ferrenha aprovação e repristinação de leis discriminatórias, vejam só.

Em uma particular rememoração -- muito bem escrita -- do início do que hoje conhecemos como "massacre de Tulsa", vemos que tudo começou porque um homem negro apenas esbarrou em uma ascensorista branca e ela gritou que havia sido atacada. Ele foi levado ao tribunal, óbvio, mas muitos negros souberam do ocorrido e foram protestar, e logo brancos armados e em grupos cada vez maiores começaram a perseguição, massacre e expulsão dos homens, das mulheres e das crianças que viviam em Tulsa, mesmo que tivessem de queimar todas as casas para garantir que isso ocorresse. E as leis Jim Crow não vigoravam lá...

Bom, o livro é mais do que isso. Diz respeito à busca por ancestralidade, afirmação do humano, ocupar espaços, sobreviver. Quando Atticus, um dos personagens principais, retorna da Guerra da Coreia para Chicago, Illinois, encontra a casa de Montrose, seu pai, vazia, e parte com seu tio George e a vizinha Letitia para encontrar o velho. As únicas pistas: uma carta de seu pai, um Daimler prateado dirigido por um homem branco -- com quem seu pai foi visto, contudo interagindo de forma amistosa -- e a possibilidade de irem a Ardham, ao que no livro é conhecido como Território Lovecraft, um local estranho, em que uma comunidade construiu a pequena cidade de Bideford, politicamente separada do condado de Ardham, e onde negros não eram bem-vindos. Detalhe, essa comunidade é formada por pessoas que queimavam bruxas na Inglaterra.

O livro me pareceu ter a estrutura de diversos contos que revelam um suíte bem amarrada. Lembra-me mais um fix-up do que um romance, já que os capítulos, com exceção dos dois primeiros, possuem protagonistas e histórias diversas. Há sim um aspecto de horror cósmico -- e, SPOILER ALERT!, uma senzala cósmica, no estranho e excelente capítulo em que a personagem principal é Hippolyta -- esposa de George, e mãe do adolescente Horace, talentoso desenhista e que também tem uma história maravilhosa, e que lembra mais um conto de horror de Stephen King. 

Outro capítulo fascinante é Jakyll in Hyde Park, em que Ruby, irmã de Letitia, é a condutora da história, em uma sensual e estranha -- e também, pelos motivos errados, libertadora -- emulação da arquetípica dominação do eu pela sombra (ou mesmo pela inflação da persona, diga lá?).

Todos os capítulos costuram a história que começa lá com a viagem de Atticus, e se você espera que o mythos esteja bem presente aqui, saiba que o autor investe mais em camarilas & sociedades secretas, maçonaria e magia. Senti um incômodo na leitura. Creio que ingressei na história com o pensamento errado, como se as lendas lovecraftianas se inserissem na história em uma intertextualidade para além das metáforas, mas o incomum aqui é a magia. Ocorre que esse elemento extrafísico perpassa a obra com certa familiaridade, mesmo para aqueles personagens que não tiveram contato anterior com os estranhos acontecimentos, como é o caso dos amigos maçons de George. É como se as "maravilhas" ocorressem de forma a não maravilhar ninguém. Isso pode ter sido mais falha do Ruff ao narrar certas passagens do que sua original intenção. 

Encontrei alguns outros problemas também: em determinada cena, um personagem esperou uns instantes para que "sua frequência cardíaca diminuísse"; em cena do início do livro, o autor explica em off o que se passara entre dois personagens, quando poderia ter mostrado a cena, o que seria algo rápido.

Apesar disso, as demais descrições, ambientações e interações entre os personagens são bem escritas, cumprem com a proposta de gerar tensão e de contar uma boa história de entretenimento e de recuperação da História do sofrimento -- ainda presente -- da população negra nos EUA.


Ps.: Em tempo, vi o primeiro episódio da série Lovecraft Country, da HBO, quando se encontrava disponível no canal oficial da emissora no YouTube, e posso dizer que o episódio é melhor do que o início do livro -- desenvolve melhor os personagens e é mais assustador.





Território Lovecraft, de Matt Ruff.

Tradução de Thais Paiva.

Editora Intrínseca, 352 páginas.

Edição Kindle