quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Amor, maldição!

E existe amar no mau sentido? Não confunda amor e paixão, atração, maldição! Há amor sem paixão, atração sem paixão, paixão sem amor. Mas se pode amar mal, ah e como se ama, como mal se ama.

Não possuímos a simplicidade das plantas, volúveis e voláteis, levadas pelo vento para germinar quem se encontra pela frente. É uma cópula termal, folhagens balouçantes, ondeantes, raízes se entrelaçando, trepando umas nas outras com muita simplicidade e naturalidade.

Os animais... São os mestres. Fulano é um galinha. A outra, uma piranha. Aquele ali come que nem um coelho. E nós, enganados nesse antropomorfismo discriminatório. Os irracionais são tão simples, sabem o que querem, conhecem os riscos e investem em suas pulsões. 

Irracionais ou não, sempre temos de equacionar as pequenas variáveis. Um amontoado de sentimentos, sensações, beliscões e tapinhas de um intercurso cheio de interlúdios. Cheio de contas mal feitas e resultados sem explicações.

Amor, paixão, atração, tudo é um exercício intelectual para nós, humanas criaturas. O sexo selvagem é uma mentira inventada para enganar nossos hormônios, para nos despistar e nos fazer parar de pensar em sexo.

Mas que é bom, é.

E o amor? Filho dos deuses ou criação humana, desgarrada das convenções sociais mais hostis? O amor é fogo, ferida, doença, bálsamo, panaceia. Até agora, isto sim, um grande efeito placebo. O amor é o país dos viajantes perdidos, ninguém voltou para dele falar em definitivo. Há aproximações desalinhadas, conceitos tautológicos, tergiversações de uma má retórica.

Não desista, porém. Quem sou eu para falar sobre o amor?

Mas se o amor se explica, isso revela muita coisa. Fico com Osho quando ele diz que "as explicações são enganosas". E ele diz mais: "O perfeito amor dispensa demonstrações (...) não tem know-how", não precisa ser ensinado.

Ame, ache que ame, ame o amor e ame amar. Se sentir uma explosão inominável, aceite. O amor, afinal, é uma roleta russa.

domingo, 28 de agosto de 2016

Conto - O Duque


O DUQUE

Não era possível. Ele tinha fechado o jogo. Tinha certeza, venceriam por pontos. Colocou o duque lá, na ponta. O parceiro, encardido, enjoado, musicou e deu a vez. Ele sabia que ia fechar o jogo.

Bateram de Duque, que merda: Lá e Lô, e Cruzado! A carroça de Duque...

Pi .... Pi .... Pi .... Pi ... Pi ... Pi .. Pi . Pi Pi Pi Lá vem a Dona correndo. Pi Pi Pi .. Pi ... Pi ... Pi .... Pi ..... Lá vai a Dona correndo.

Parecia avisar que ele perdeu, mandou contar o tempo da última vez que ganhou. Piiii!!! Poderia ser a zombaria, sua zombaria particular, de quem não ganha há tempos. O Real perdido a cada rodada, mas o copo ganho sentado compensa a garrafa em pé. Afinal, ele era um dos Jogadores. Queria jogar...

Como ele não tinha percebido que eles tinham um duque? Ele tinha de ter contado, mas o parceiro não sabia que ele fingia contar as peças. Ficava assim, feito Terence, o mendigo, encostado na barraca de coco, todo de preto e espichado nesse sol, fingindo que não se interessava, fingindo que não pedia dinheiro, fingindo que ia embora. Fingia que contava. Mas Terence não jogava, não. A gente fingia e ele que não. Se escondia na frente de todo mundo e só falava quando falavam com ele. Levantava o braço e cumprimentava a maresia. Era feito a carroça de Duque não contada, uma pedra vesga, olhava e fingia que não olhava.

A Sofrência sacudiu a mesa e as peças se remexeram, pararam, caíram no colo. O Morto ficou ali, morto, as pedras equilibradas de cabeça prá baixo. Ele olhou pras suas peças, olhou pro morto, queria ressuscitar algumas, queria ganhar aquele jogo, queria ficar naquela estufa, mas o melhor era estar na água, se refrescar, na água quente da praia, se benzer no chuveiro salgado do sol. E se perdesse? Se perdesse era ruim, ruim mesmo, ele ia saber. Ia prá outra cerveja, de todo jeito iria, mas iria em pé, soltando graça para se fingir de graça, prá se desviar do quadrado do dominó para a roda da folia. O mar não dava liga, pros companheiros era só o banho antes do PE-15, da Integração...

Tava quente, e o cheiro fedia, fedia a sacolinha da prefeitura que deram pro lixo, prá consciência ambiental, pro homem de verde, para mim e para você. Prá que salvar tanta gente?, ele parecia pensar. Já tem um bocado. Em setenta eram noventa milhões em ação; agora, deve ser quase bilhão. Deixa como tá, se vai, vai. É só mais gente... Na casa dele eram cinco. E pensa que é falta do que fazer? Governo dando dinheiro, bolsa prá família... até certo ponto, quanto mais trabalho, melhor. E ele aqui, de seguro desemprego, olhando pras pedras, o riso escapou. “Tá rindo de quê? Joga nessa merda!”

Ele queria jogar e contava. Contava que tinha cinco pedras na mão. Calculava que era muito esforço para salvar o que só aumentava. É, no barraco o pirraia já dizia que Lula volta. E Dilma num veio também? E num foi? Feito a dona do Pi Pi Pi, quando vem, passa rápido.

A Dona volta. Pi .... Pi .... Pi ... Pi . Pi Pi PiPiPiPiPiPiPiPiPiPiiiPiiiPiiiPiiiii... A Dona cai. E eles bateram de novo. Lá e Lô, e Cruzado, e de Duque. Ah, não, os miseráveis tavam roubando. Esconderam a pedra quando mexeram. Com o olhar ele acusou o Morto, que ficou calado. O rebuliço foi geral! Os homens bateram suas camisas nas costas dele. “Vai ser pé ruim assim lá em casa!”

Piiiipiiiipiiiipiiiipiiipiiiipiiii

“É pé frio”, o outro gargalhava.

“Ei, porra, a Dona, mermão, a Dona!"

Aquilo veio como tsunami e se espalhou. Antes alegria, agora desolação, correria, a Dona no chão, ele olhando prás pedras, e eu já não. “Olha a Dona, pô!”

Ela tava deitada de costas, a camiseta azul arrochada, espalhada pela areia do calçadão, suada. Tava no exercício, era bom um regime, né? A viseira caída, o queixo tremendo.

Piiipiiipiiiipiiipiiiipiiipiiii

Já tinha gente demais, e eu vi mãos nos afastar, um círculo se formar e ele, de alguma forma lá dentro, pôs o boné prá trás e segurou os braços da Dona. Colocou a mão no centro do peito dela, era um prá cada lado, e segurou o pulso da coitada.

Então ele desatacou o relógio e jogou o bicho no chão. Olhou para mim e disse: “Pronto, quero ver agora!”.

domingo, 14 de agosto de 2016

Interfaces Holográficas (I)

Eu não tenho bílis ou mesmo serenidade suficiente para participar das discussões no facebook. Não porque eu pense que elas são inúteis. Acho que é uma questão de me poupar, mesmo. A intensidade e quantidade de reclamações aumentou exponencialmente diante dos fatos políticos. Quero evitar um julgamento sobre a utilidade desses posts. Apenas penso que caiu um véu quanto ao estado de ilusão em que muitos se(nos) encontravam(os) a respeito do Brasil e de sua força, de seu multiculturalismo, de sermos um povo de peito aberto. Isso é pontual e contingente. Ainda somos o país do “jeitinho” e da “lei da vantagem”. Se aquele comportamento tem um lado positivo, de desemperrar uma máquina ineficiente, este apenas está preocupado com ganhos materiais. O que vejo são discriminações várias (contra as mulheres, de teor sexual, de teor político, intelectual etc.). O Outro é um monstro e há de ser imposta a ele a vontade que se defende do desconhecido, do abuso pela ignorância. O meu lado analógico também é responsável por um certo distanciamento dessas discussões. Desde muito novo convivo com computadores e com pessoas que dominavam essas máquinas, mas em mim pairava um ar de fascinação, e não de curiosidade prática, isto é, eu gostava de mexer, mas não de aprender a partir desse contato. Pois minha interface holográfica com as redes sociais ainda é limitada. Enxergo que muitos conhecidos e amigos vivem nas redes sociais. Eles trabalham, cozinham, estudam etc. e estão sempre conectados. Há uma bolha de isolamento, mas uma vida cibernética intensa, a holografia do espírito que habita a máquina, as conexões, zeros e uns que preenchem a tela dos pensamentos antes retidos para si, antes postos em diários e sei lá mais o quê (não quero especular tanto sobre isso, e a mesa de um bar ou café sempre é um ponto comum de união). Eu mesmo falaria uma porrada de coisas, reclamaria sobre a monetização da vida, a necessidade de se ganhar e se ganhar mais, de ter e de reter, o crepúsculo dos ídolos da esquerda, a vampirização imposta aos brasileiros pelos que estão atualmente no poder, a derrocada de nossas instituições e do espírito político de solidariedade, mas eu decidi que a via é o melhoramento individual. É agir, ainda que de forma submersa e subversiva, contra e a favor de mim mesmo, visando a um ideal ético que ainda não tenho, mas sem deixar de me descobrir no meio do caminho. Há alguns estalos na consciência cujas origens são para mim nebulosas. Inconsciente? Esses mecanismos ainda me são desconhecidos. Outra interface holográfica, porém, pode ser encontrada na própria existência. Se a mente tem uma origem externa ao corpo ou não, essa “transformação” operada na e pela natureza apenas nos devolverá à ordem das coisas. E que djabos de ordem é essa? Creio na Física Quântica muito mais do que em Javé (apesar de pouco saber sobre os dois - aquela por falta de estudo, este por não levar tanto em consideração as opiniões humanas nos livros ditos sagrados). Somos um pontual colapso quântico em eterna energia, uma holografia, portanto, e a manifestação nas redes sociais pode ser, por isso, um tanto reveladora, pelo que não é dito, quanto tenebrosa, porque amor e carinho parecem ser moedas de troca e publicidade individual, na maior parte dos casos. As exceções são inúmeras, sim. É sempre bom compartilhar bons momentos, mostrar alegria, respeito mútuo. Por outro lado, o simples desabafo - como esse texto bem pode ser caraterizado, eu sei - pode ser mais revelador do que se imagina.. Há muito penso que a melhora de todos depende da atitude de cada um. Espero poder trabalhar isso melhor em mim e estar à disposição para ajudar, tanto profissionalmente quanto carinhosamente, quem precise. Mas e como eu farei isso? Eu!?, “Eu sou o Batman!”

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Amargo a Setenta *


No centro da cidade a terra é definida pela água. São meandros, canais, braços de rio com desejo de mar, um mosaico de ilhas e aterros de uma agitação urbana. Pés caminham sobre locais de batalha, e artefatos históricos se escondem sob o pavimento. Monumentos em homenagem à defesa e à segurança são cercados pela modernidade onde antes era mar e arrebentação.
Caminhei entre os santos - de Santo Antônio a São José - com cautela, por causa da hora, mas certo de que o frescor da noite me afastaria de pensamentos desagradáveis.
Número 70 da Rua da Praia, foi o que me disseram. “Amor a 70”, diz a placa. Uma maçã desbotada sobre um coração não menos gasto. O suficiente. A morte a 70 é o que trago.
A madeira da escadaria é seca, empoeirada, sulcada no centro. Rangeria o eco solitário dos meus passos.
Um puteiro com seus segredos, paredes descascadas e espaços entre cantos preenchidos com promessas de um vislumbre. Pelo espelho duplo eu via corpos se tocarem, se trocarem, espalhados pela cama. Um clichê de cetim, brilho e reflexos filtrava a luz diáfana das lamparinas sobre o toucador. Eu assistia e resistia ao impulso de fazer parte dessa onírica melodia. Queria fugir sem me retirar, aplacar a angústia sem tocar na ferida, morder o chocolate sem retirar o delicadíssimo papel que o embrulhava.
Dezoito reais e noventa e nove centavos por cem gramas de chocolate amargo a setenta por cento. É bem mais do que eu preciso para uma só noite. Já não é uma excentricidade gostar desse tipo, mas um sorriso amigável, e à vista, é sempre bem-vindo.
Guardo a barra no bolso interno do meu casaco e volto a olhar pelo vidro. Os lençóis caem em cascata pelo chão. Ele, deitado, se recosta à fina parede, sua mão procurando um cigarro aceso que repousa no cinzeiro de metal. O tesão bateu mais forte, pois a cinza pende sob o efeito da gravidade e a brasa come, devagar, o papel seda.
Ela é magra, pernas compridas e finas bem desenhadas. Os ossos da pélvis são salientes, e seus seios preenchem o ar com suavidade e um viço juvenil invejado por muitas. A maquiagem pesada, à meia luz, torna incerta sua idade. Seu cabelo tem um corte engraçado, marca o rosto redondo e ossudo, e seu lábio inferior parece se fender quando ela sorri. Ela gira nos calcanhares, com um leve tremor. De onde estou não consigo ver o que está fazendo, mas logo ela deve trazer uma bandeja velha, porém bem cuidada, com pratos fumegantes e um par de drinques coloridos. Além da amarga sobremesa. O serviço fora entregue. Eu abro os olhos e paro de imaginar o que teria ocorrido naquela alcova.
Na verdade estou sentado. Sentado sobre uma das velhas e polidas pedras de lastro de navio que adornam as calçadas do centro da cidade, buscando conter meus pés que não conseguem se firmar sobre a sulcada superfície da rua, ainda mais porque molhada.
Eu me afasto quando escuto os primeiros gritos roucos e vozes estridentes. Chamariam o Samu? Acho que não. O que alguém como ele estaria fazendo ali?
À noite, o entorno do mercado contrasta a ebulição da feira diurna. Eu ouço vozes perdidas na rua deserta.
Sinto-me abundante, a plenos pulmões. Apenas os vapores são sentidos, formam uma crosta sobre as paredes e lajes dos antigos edifícios, cujas portas parecem apenas querer comércio. Dividem espaço com os moradores da região que, deitados sobre as calçadas, tentam fugir do vento quente trazido pela maresia.
Não há porque me preocupar com os restos de ontem, não há porque desfilar um conjunto de intenções presumidas, um salto no escuro dos acontecimentos. Eu queria era poder conseguir um grande furo e mandar parar as prensas, mas, no meu negócio, a fama é restrita. Deve ser acessível apenas aos que importam, e estes já se foram. Se você quiser atenção, não siga meus passos. Mas você quer. Acaba dando com a língua nos dentes. Quer falar, quer que o outro saiba quem você realmente é, quer dividir com o mundo as maravilhas de que é capaz. E o mundo é cruel com tipos como eu.
Não deixe que gostem de você, mas seja agradável. E, se você for curioso como eu, estude. Estude muito, ocupe seu tempo, faça alguns trabalhos manuais, aprenda alguns idiomas, viaje. Conheça novas pessoas longe de onde você mora. Frequente clubes de swing por prazer e não apenas profissionalmente, como eu. Há momentos em que a discrição ajuda. E ser solitário é chamar atenção. Tenha pessoas a seu redor, mas fique quieto. Eles querem um trabalho limpo e dão as diretrizes. Sempre sabem que órgãos a artéria principal alimenta. É uma questão de aprendizado, de erros e acertos, de aperfeiçoamento e constante purificação.
Olho para trás e vejo a ambulância chegar para atender a vítima de parada respiratória. Chamaram o Samu. Era alérgico, coitado, é o que sairá no laudo do IML.
Sim, eu voltarei a esse clube. A proprietária é bem discreta.
“Moço, moço”, sinto um puxão na perna e um tilintar de moedas, “me dá um dinheirinho”. Algumas moedas vão do meu bolso ao saco de lona puída que ela carrega. Dou o restante do chocolate, também. Vejo que ela o divide em dois e o joga dentro do saco. Alguém tem de ensiná-la a sobreviver. Primeiro, é de madrugada; depois, está tudo fechado; terceiro, quem arrecada dinheiro a essa hora? Ela se afasta em silêncio e balançando o saco enquanto anda. A vida ensina.
Agora eu giro nos calcanhares. Corro em direção à menina e a seguro bruscamente, deixando-a momentaneamente assustada. Para amenizar a situação, converso com ela em um patuá difícil de ser entendido. Ela se abraça ao saco e me olha com olhos capitalistas. Está prestes a agir em legítima defesa de sua propriedade turbada quando eu lhe estendo uma nota de dois reais novinha. Seus olhos se arregalam ainda mais. Eu teria achado isso impossível momentos antes, quando lhe dei o chocolate, que agora ela me devolve após uma justa e difícil negociação. Algo tão banal quanto lhe devolver a vida – “Amorte a 70”. Por hoje não mais. É uma questão de aprendizado, de erros e acertos, de aperfeiçoamento e constante purificação.

* Esse conto foi um dos vencedores do concurso de Literatura do Tribunal de Justiça de Pernambuco em 2015.
Em tempo: sou aluno de Sidney Rocha, mas produzi esse conto antes das primeiras aulas com o mestre, senão teria aplicado as edições que quis posteriormente fazer. Por honestidade intelectual, segue o conto como fora publicado.