segunda-feira, 12 de novembro de 2018

"Olha uma última vez para cima"

Era uma vez um empresário do ramo de biscoitos e bolachas (para agradar a ambos...) que vendeu sua fábrica, aboletou-se para São Paulo para participar de um leilão de um super terreno em Recife (!), terreno da União, em que há (havia) galpões, trilhos de trem etc. Juntou-se a uma mega construtora, pagaram apenas cinquenta milhões de reais pelo terreno - arremataram-no! - e criaram um projeto, encampado pelo prefeito da cidade - no escurinho do cinema - para a construção de imóveis (torres) de luxo em uma área junto ao rio. Acreditando que essa área deveria ser preservada, posta a uso pela cidade como um todo, e que, em qualquer caso, deveria haver discussão prévia sobre o caso, o Movimento Cidade Plana (MCP) surgiu e foi debelado em uma ação totalitária pelas autoridades locais... isso poderia ser ficção, e é, mas não folclore. Wellington de Melo, em seu romance "Felicidade", nos mostra o que ocorre no MCP após a desocupação - quando então a cúpula do movimento decide agir: quarenta membros cometeriam suicídio atirando-se de diversos prédios espalhados pela cidade. 
No meio desse ato, surge Ademir, principal voz do livro. O enredo parece-nos mostrar, em meio à crítica social, as ações de Ademir e suas consequências. Ademir é Narciso, Ademir é Édipo cego, é o Osiris de Isis... quer paixão, reconhecimento, sua carência é palpável; sua revolta, um sofrimento dentro de si.
Ademir é personagem de seu amante, Ignácio; sua vida contada é uma traição imperdoável - há incesto, estupro, abandono afetivo, idolatria; ele quer a redenção com sua irmã/irmão Zê, a atenção de Ignácio, a cama com seu cliente Pedro. 
Pedro, esse misterioso personagem... segurança de rua ou "agente provocador"? Os dois. Pedro que surge para assombrar Ademir ou é o próprio Ademir em suas memórias bloqueadas? Essas dúvidas não respondidas in totum dão ao romance uma profundidade psicológica, põem Ademir a circular em nossa mente.
A descida de Ademir no redemoinho que se segue parece ter seu rosebud em um evento quando era criança, um jogo de futebol e as "brincadeiras" que envolvem a descoberta da sexualidade. O que desencadeia seus atos narrados no livro pode ter sido essa fixação e paixão (consumada ou não consumada? Consumida?) por sua irmã/irmão; ou a(s) traição(ões) de Ignácio - por minha vez, penso que Ignácio não é estopim, mas engrenagem.


O livro é dividido em três partes que se interpenetram, não lineares, aparentemente circulares.
Quero chamar essas impressões de "Notas sobre Felicidade":
Parte 1 - Beleza - metáforas de construções e espaços urbanos; "horizontalização" dos ricos, uma homogeneidade que remete a questões de gosto, Pierre Bourdieu.
Pra mim, a frase que resume a parte Beleza é "All memory has its price, baby", porque em inglês ficou melhor (p. 23).
A interação entre Mário, Ignácio e Ademir (este conhece Ignácio por meio de Mário) parece ser o ponto alto da primeira parte. Há uma voz ali que critica a literatura hoje, o "movimento literário", o culto aos autores de frases feitas. 
Há uma voz ali que quer agir, libertar-se do papel, atacar e sumir, covarde e provocadora. Provocou-me angústia, e isso me agradou muito.
Parte 2 - Julgamento - O diálogo entre Lorena (membro do MCP) e Ademir é quase metonímico: conversão, reconciliação, crença, morte. Palavras não ditas pro que só foi dito em parte. A morte os interrompe - só não sei se como tabu ou como omertá.
Entendi como se Ademir tivesse sofrido um estupro coletivo aos oito, nove anos. Isso seria uma justificativa do autor para a homossexualidade da personagem, para sua prostituição? ("Falo. Tudo que vem à boca, falo" - belíssima passagem).
Ademir parece ser apático ao Movimento Cidade Plana (MCP), apesar de ser um dos seus participantes e estar prestes a fazer seu salto de protesto.
Há um diálogo, o "é preciso seguir em frente", que só nos mostra como esse tipo de perlocução é falsa, como nos enganamos sobre o luto e sobre aquilo de que não queremos recordar. O reprimido é a História.
O encontro entre Ademir e Marcelo nos mostra que a praça de alimentação hoje é o altar dos templos do consumo. Uma procissão, uma reunião, uma comunhão.
Parte 3 - Misericórdia - O julgamento nas redes sociais nos perfis dos suicidas; os anjos caídos; como se enterravam os reis, rei Ignácio, nascido do 🔥; o tempo avança sem misericórdia; semente para fugir do nada; a perda do amor: sem Zê, Ademir não era nada nem ninguém - o alfa e o Ômega, de A a Z.
Essas notas me tomaram como assombração. Foram quase um fluxo do inconsciente. E por que não fazer crítica/resenha/apontamentos/gosto assim? Eu adorei! Não sou vinculado à academia - pelo menos de crítica literária - então me sinto e sou dono desse espaço. Sim, isso é uma justificativa ao método e aos haters...

Voltando ao romance.
Os perfis dos personagens de classe média alta que aparecem são estereotipados - pessoas fruto de uma educação patriarcal, machista e segregacionista. Não são, porém - e ainda bem - caricaturas. 
Os prédios antropomorfizados - eram as vivas (inertes, mas com vida apenas intestina) homenagens aos antigos proprietários das terras em que foram edificados. 
O MCP tem seu intento - para chamar atenção ou mesmo se implodir com o Ato - visto por inúmeras pessoas, mas estranhamente os noticiários são silentes. Ainda que haja uma ética de não se noticiarem suicídios, os atos do MCP são quase terroristas, no mínimo políticos.
A voz narrativa dominante, a de Ademir, coloca-nos sob o signo da ausência, ausência dos corpos, da verdade, ausência de si. A literatura nos mostra no outro, nos traz conhecimento e nos brinda com a possibilidade de sairmos mais sábios após as últimas páginas de um livro.
Li em algumas resenhas que Wellington pecou ao tentar realizar uma alegoria sem se aprofundar na crítica social. Como já afirmei antes, o romance não é folclore (nem uma cena do filme The Wall). A história de Ademir - tendo como pano de fundo a crítica político-social em relação à urbanização desenfreada do Recife, o controle do governo sobre a mídia local, a sociedade patriarcal - sobressai-se porque o indivíduo é, antes de tudo assujeitado - às ideologias, ao inconsciente, a seus traumas psicofísicos - tudo em meio a uma tentativa de se emancipar, ainda que desconhecida ou vã - como ocorreu com Ademir, pois ele parece se perder, desmanchar-se no(s) outro(s).
Por fim, Ademir se compromete com escolhas definitivas? 
Vai ler o livro!

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Cavaletes (conto)

Sinto que me barraram em minha própria casa. Sinto, mas não muito.
Não consigo me aproximar, não que eu não tenha vontade; não tenho perdão.
Estava sobre cavaletes. Puídos e emprestados por Seu Jorge. Será que vai cair? Casa de cupim quando quebra todos correm; um caixão quando cai…
Já vai longe e tarde.
E quando todos saem, a casa fica. Eu fico na casa.


* Nota. O conto veio com uma ideia que tive durante minha ida no ônibus ao trabalho hoje pela manhã. Acrescentei palavras, limei outras, mas a forma não é esta aqui impressa. Creio que a forma dará, para mim, sentido ao que o narrador/personagem passa/é sujeitado. Ficou, na verdade, um microconto. Isso porque ele não está acabado, mas como não tenho pretensão capitalista com minha literatura, e sim narcísica, vou publicar o processo, as etapas e a conclusão, esta posteriormente. Simplesmente editarei essa postagem, ok, folks?


quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Re//torno

Em torno da coisa (res).

A coisa volta.
A coisa do outro. A volta do outro.
O Outro.
Em torno da psicanálise lacaniana e seus termos herméticos - furo soprador; lalíngua, real, A, a, Outro, outro, sujeito barrado, verdade incognoscível (real?)...
Tergiverso. Antes em versos...
Mas suscito em mim uma curiosidade que vai além de minha análise, minha autoanálise - se isso for possível - uma conversa ao pé do inconsciente, uma impossibilidade.
Torno às coisas, ao preenchimento daquilo que, desde Joyce, tornou-se sinthoma, ou phanthoma, lalíngua posta em resto... Não há como se traçar a angústia.
(Retalhos.
Uma interessante HQ sobre adolescer, crescer, perder. Sobre impossibilidade).
Sou uma angústia de verso e anverso. Um lado mystique; outro, plastique.
Linguagem, discurso, desejo. O desejo que vai além da linguagem. A verdade que não é linguagem; o discurso que não é verdade; o desejo que toca o real, a verdade...


Rem
Em torno.