No meio desse ato, surge Ademir, principal voz do livro. O enredo parece-nos mostrar, em meio à crítica social, as ações de Ademir e suas consequências. Ademir é Narciso, Ademir é Édipo cego, é o Osiris de Isis... quer paixão, reconhecimento, sua carência é palpável; sua revolta, um sofrimento dentro de si.
Ademir é personagem de seu amante, Ignácio; sua vida contada é uma traição imperdoável - há incesto, estupro, abandono afetivo, idolatria; ele quer a redenção com sua irmã/irmão Zê, a atenção de Ignácio, a cama com seu cliente Pedro.
Pedro, esse misterioso personagem... segurança de rua ou "agente provocador"? Os dois. Pedro que surge para assombrar Ademir ou é o próprio Ademir em suas memórias bloqueadas? Essas dúvidas não respondidas in totum dão ao romance uma profundidade psicológica, põem Ademir a circular em nossa mente.
A descida de Ademir no redemoinho que se segue parece ter seu rosebud em um evento quando era criança, um jogo de futebol e as "brincadeiras" que envolvem a descoberta da sexualidade. O que desencadeia seus atos narrados no livro pode ter sido essa fixação e paixão (consumada ou não consumada? Consumida?) por sua irmã/irmão; ou a(s) traição(ões) de Ignácio - por minha vez, penso que Ignácio não é estopim, mas engrenagem.
Quero chamar essas impressões de "Notas sobre Felicidade":
Parte 1 - Beleza - metáforas de construções e espaços urbanos; "horizontalização" dos ricos, uma homogeneidade que remete a questões de gosto, Pierre Bourdieu.
Pra mim, a frase que resume a parte Beleza é "All memory has its price, baby", porque em inglês ficou melhor (p. 23).
A interação entre Mário, Ignácio e Ademir (este conhece Ignácio por meio de Mário) parece ser o ponto alto da primeira parte. Há uma voz ali que critica a literatura hoje, o "movimento literário", o culto aos autores de frases feitas.
Há uma voz ali que quer agir, libertar-se do papel, atacar e sumir, covarde e provocadora. Provocou-me angústia, e isso me agradou muito.
Parte 2 - Julgamento - O diálogo entre Lorena (membro do MCP) e Ademir é quase metonímico: conversão, reconciliação, crença, morte. Palavras não ditas pro que só foi dito em parte. A morte os interrompe - só não sei se como tabu ou como omertá.
Entendi como se Ademir tivesse sofrido um estupro coletivo aos oito, nove anos. Isso seria uma justificativa do autor para a homossexualidade da personagem, para sua prostituição? ("Falo. Tudo que vem à boca, falo" - belíssima passagem).
Ademir parece ser apático ao Movimento Cidade Plana (MCP), apesar de ser um dos seus participantes e estar prestes a fazer seu salto de protesto.
Há um diálogo, o "é preciso seguir em frente", que só nos mostra como esse tipo de perlocução é falsa, como nos enganamos sobre o luto e sobre aquilo de que não queremos recordar. O reprimido é a História.
O encontro entre Ademir e Marcelo nos mostra que a praça de alimentação hoje é o altar dos templos do consumo. Uma procissão, uma reunião, uma comunhão.
Parte 3 - Misericórdia - O julgamento nas redes sociais nos perfis dos suicidas; os anjos caídos; como se enterravam os reis, rei Ignácio, nascido do 🔥; o tempo avança sem misericórdia; semente para fugir do nada; a perda do amor: sem Zê, Ademir não era nada nem ninguém - o alfa e o Ômega, de A a Z.
Essas notas me tomaram como assombração. Foram quase um fluxo do inconsciente. E por que não fazer crítica/resenha/apontamentos/gosto assim? Eu adorei! Não sou vinculado à academia - pelo menos de crítica literária - então me sinto e sou dono desse espaço. Sim, isso é uma justificativa ao método e aos haters...
Voltando ao romance.
Os perfis dos personagens de classe média alta que aparecem são estereotipados - pessoas fruto de uma educação patriarcal, machista e segregacionista. Não são, porém - e ainda bem - caricaturas.
Os prédios antropomorfizados - eram as vivas (inertes, mas com vida apenas intestina) homenagens aos antigos proprietários das terras em que foram edificados.
O MCP tem seu intento - para chamar atenção ou mesmo se implodir com o Ato - visto por inúmeras pessoas, mas estranhamente os noticiários são silentes. Ainda que haja uma ética de não se noticiarem suicídios, os atos do MCP são quase terroristas, no mínimo políticos.
A voz narrativa dominante, a de Ademir, coloca-nos sob o signo da ausência, ausência dos corpos, da verdade, ausência de si. A literatura nos mostra no outro, nos traz conhecimento e nos brinda com a possibilidade de sairmos mais sábios após as últimas páginas de um livro.
Li em algumas resenhas que Wellington pecou ao tentar realizar uma alegoria sem se aprofundar na crítica social. Como já afirmei antes, o romance não é folclore (nem uma cena do filme The Wall). A história de Ademir - tendo como pano de fundo a crítica político-social em relação à urbanização desenfreada do Recife, o controle do governo sobre a mídia local, a sociedade patriarcal - sobressai-se porque o indivíduo é, antes de tudo assujeitado - às ideologias, ao inconsciente, a seus traumas psicofísicos - tudo em meio a uma tentativa de se emancipar, ainda que desconhecida ou vã - como ocorreu com Ademir, pois ele parece se perder, desmanchar-se no(s) outro(s).
Por fim, Ademir se compromete com escolhas definitivas?
Vai ler o livro!
Nenhum comentário:
Postar um comentário