quarta-feira, 25 de março de 2020

Bloodchild, novela de Octavia Butler

Como seria um homem grávido? Como seria sermos mantidos em um "cativeiro seguro" por outra espécie? Como é crescer em meio a isso em outro planeta? A autora não nos dá uma resposta definitiva, mas nos dá sua melhor resposta por meio da narrativa de Gan, o protagonista do conto.

Os seres humanos que conseguiram escapar da Terra se abrigaram em um planeta no qual já havia outra espécie inteligente, e há uma necessidade de compartilhamento até mesmo parasitário para a sobrevivência dessa espécie, os Tlic.

O texto narra um momento na vida da família de Gan, seu convívio com irmão e irmãs e a mãe, sua escolha como favorito pela líder dos Tlic, a busca pelo cumprimento de uma promessa feita no passado e a implicação de Gan nisso tudo. 

É uma história sobre crescimento, maturidade, escolhas, responsabilidade perante a vida, perante a morte. 

Octavia Butler é magistral na narrativa. Ela nos faz presente na pele de Gan, sentimos o que ele sente, respiramos suas angústias, seu desejo, dói na pele aquele tapa dado pelo irmão mais velho. 

Eu recomendo muito a leitura, especialmente porque, para além do apuro estético, Butler nos fala sobre convivência em meio à diferença, sobre a dor do outro e da miséria que somos capazes de impor a nós mesmos.

Ganhador, na categoria novella dos prêmios Hugo, Nebulla e Locus de ficção científica.

Lido no idioma original, no Kindle.
Editora Headline




quinta-feira, 19 de março de 2020

A verdade sobre os CLICHÊS do caso Harry Quebert



"Todo mundo tem seus demônios. A questão é simplesmente saber até que ponto esses demônios são toleráveis."

Essa frase é do personagem narrador do livro, Marcus (Mark) Goldman, e resume bem o espírito da obra como um todo - seja em relação à escrita: uma ética do escritor, a relação comercial editor-escritor-agente; ao sistema judiciário; à investigação policial e, já me adiantando aqui, à percepção em relação aos nossos ídolos.


É também um livro sobre o amor, na verdade sobre relacionamentos, sobre quando uma relação entre um homem mais velho e uma mulher mais nova pode ser considerada pedofilia. Ecos de Lolita, sim, o romance tem isso - Harry Quebert -->  Humbert Humbert (?). 


A Verdade sobre o caso Harry Quebert, do suíço Joël Dicker, tem muito é do relativismo que se tenta esconder nas grandes respostas a questionamentos universais.


A metalinguagem é usada no livro do início ao fim - os capítulos são compostos de dicas do mestre ao "aluno sobre como escrever um livro" - com uma analogia a esportes (boxe) e relacionamentos.


A estória e sua narração mostra acontecimentos que poderiam estar em Mindhunter, da Netflix, mas, da maneira como foram contados, não verossímeis, e essa é uma das belezas da literatura, especialmente nesse caso, em que o livro é narrado em primeira pessoa: vemos muito do que o Goldman sempre quis ser, uma "força da natureza", só que um anti-Odisseu, ou seja, os obstáculos são sempre inferiores para que ele nunca fracasse (eu particularmente me ponho muito nessa condição). Na primeira parte do livro, Marcus teve ajuda para superar essa sua trava mental, mas ao mesmo tempo sinto que sua investigação é apenas uma formalidade para a obtenção do resultado por ele já vislumbrado.


O que torna o livro intrigante e dinâmico é a heterogeneidade de gêneros, contudo isso também o faz ser desapontador: em alguns momentos, uma história de amor romântica com excesso de pieguismo; em outros, reflexões sobre o amor à vida, relacionamentos e o que nos torna humanos; em alguns momentos, um sensacional humor judeu, especialmente quando Marcus conversa com sua mãe; em outros, uma tentativa de humor a partir de uma mãe casamenteira que dirige seu negócio e seu lar com padrão militar, e cujo comportamento beira a psicose.


O erro não é apenas de tom. Sinto que as partes em que os personagens sejam caricatos e clichês - como o envolvimento na trama do motorista, saído de um filme de 007, do ricaço da região - atrapalham mesmo o desenvolvimento da trama. Talvez o simples fosse melhor executado.


Senti isso no final do livro, com suas reviravoltas e ajustes finais. E sabe quem executou maravilhosamente bem uma obra metalinguística sobre as agruras da escrita, a vontade ("e necessidade") de ser bem sucedido no meio, e cuja trama é uma replicação das dicas dadas por um escritor? O roteirista Charlie Kaufman na obra Adaptação, um dos melhores e dos poucos filmes em que Nicolas Cage e o Chris Cooper dão um show de interpretação (direção de Spike Jonze, se não me engano).


Por outro lado, os personagens são bem complexos no cerne dos clichês por eles vestidos. Vemos que o motorista possui um passado trágico, é sensível, amante das artes, ele próprio um artista de mão cheia. É assombrado pela perda da oportunidade de estar com sua amada Eleanore (Lenora de Poe?), em quem enxerga as jovens louras da cidade. Ele tem um passado trágico, e um futuro idem.


Aqui os clichês são importantes para o recado do escritor. Ele brinca com esses estereótipos, mas o faz com profundidade. O rico misterioso; a mãe judia; o editor ganancioso; o narrador atleta e escritor, mas que é um poseur. A mãe de Marcus, por exemplo: parece saída de alguma obra do Philip Roth ou de dramédias modernas de Ben Stiller à Maravilhosa Sra. Maisel.  Ela, porém, é quem tem valorosos insights, e por telefone; sugeriu a Marcus escrever sobre Harry Quebert e disse que o assassino da garota é quem provavelmente estava ameaçando Marc (contudo outro clichê, né?).


Não li críticas sobre o livro, apenas o marketing publicitário associado às frases curtas retiradas da mídia (tem um nome técnico pra esses laudatórios? É laudatório? rsrsrs Se sim, quero saber...), e senti que há muito incenso.


Esse incenso é uma parte importante do que o autor questiona acerca do mercado publicitário. Não busquei informação de como o livro foi lançado. O autor é suíço e ganhou muitos prêmios na França, mas ele faz um exagerado, mas providencial raio-x no mercado editorial americano (ah!, a capa do livro que eu li, pela Intrinseca, e não as clássicas da Alfaguara, é uma reprodução do quadro Retrato de Nova Orleans, 1950, de Edward Hopper, e parece trazer um alerta da podridão americana do pós-guerra: com perseguição a comunistas - o caso Rosemberg é citado algumas vezes - segregação etc., ou seja, o que jaz sob a superfície da vida pacata de uma cidade interiorana dos EUA). Ele cita o uso de ghost writers para ajudar os grandes escritores; a necessidade de se lançar uma obra que seja uma vitrine e que gere dinheiro, em detrimento da qualidade; a janela de lançamento por conta da eleição presidencial de 2008 - até mesmo com estudo mercadológico de por quanto tempo o livro estaria nas notícias, e assim na boca do povo, até novembro de 2008.


Além de criar personagens complexos sob o verniz do clichê (usei um metaclichê, agora!), o autor consegue entregar a trama proposta, mesmo com todas as reviravoltas. Não há furos, na verdade os furos fazem parte da trama, do "narrador mentiroso" ou que não presta atenção. Gostei muito disso, de como o narrador presume as coisas - e induz o leitor a cair nessa armadilha (It's a cliché trap!) - e no final vemos o castelo de cartas desmoronar (vai, tenho que ser clichezento também, né!)  achei muito bom o fato de a trama policial ser quase um jornalismo investigativo gonzo, meio Truman Capote.


Eu recomendo a leitura.


3.5/5


A VERDADE SOBRE O CASO HARRY QUEBERT


Autor JOËL DICKER
Ed. Intrínseca (o livro é de 2012, lançado aqui em 2014)
Lido no Kindle

P.S.: quando fui procurar a imagem da capa, hoje, descobri que há uma minissérie☺️ em dez capítulos, de 2018, com o Patrick Dempsey interpretando o Harry.