quinta-feira, 17 de setembro de 2020

The Boys - Ficções, Política e o Outro


 

The Boys é uma série - baseada no quadrinho homônimo criado por Garth Ennis e Darick Robertson - na qual uma equipe de super-heróis é patrocinada por uma empresa chamada Vought. A empresa tenta fazer com que os heróis atendam a chamados globais de enfrentamento a ameaças terroristas, e muito do que ocorre nos bastidores é a manipulação do governo americano para que isso seja sancionado. 

Questões corporativas ficam à margem quando as questões pessoais dos heróis surgem, e daí vemos porque não é possível existir, de verdade, uma Liga da Justiça nem os Vingadores como os vimos retratados - isso sim é uma utopia. A série possui muita violência gráfica, mas esta acaba sendo quase um refrigério em comparação às questões morais e políticas colocadas. Não há preto nem branco, e sim uma longa faixa cinza interrompida de vez em quando por um vermelho bem forte - não o vermelho de "ameaça comunista", mas de sangue, sangue dos que sofrem com a manipulação governamental e corporativa da qual, transportada da tela para nossa vida, somos vítimas. 

Nesse aspecto, uma das cenas mais interessantes na série The Boys é o confronto entre Stormfront e Homelander no quarto episódio da segunda temporada. Homelander, um Peter Pan anabolizado com problemas narcisísticos em nível homicida, acusa a "heroína" de roubar a popularidade que ele, líder d'Os Sete, possui. Ela diz que ele está muito enganado, que não se preocupa com cinquenta milhões de votos por ele recebidos na enquete sobre a qual discutem, e que ele tem de se antenar aos novos tempos e se comunicar de maneira mais rápida e eficiente com os seguidores, porque ela precisa de apenas uns cinco milhões, e não dez vezes isso, desde que esses sejam crentes e raivosos porque assim ela teria uma massa de manobra que poderia agir de forma muito rápida, e de modo eficiente, a espalhar o que ela tem a dizer, e não teria uma vontade diluída em algumas dezenas de milhões que não fazem nada.

A arte imita a vida, não? O quanto esse episódio foi escrito pensando nos apoiadores de Trump lá nos EUA - e, por extensão óbvia à minha pretensão, aos apoiadores de Bolsonaro aqui no Brasil? Há uma escalada de coisificação elevada à idolatria que vem ocorrendo aqui no BR. A massa de manobra do presidente, ainda que haja pessoas inteligentes nela (pior por isso, vide o nazismo), é movida por vontade e interesses puramente egoístas - perpetuar seus ganhos materiais e ter a expectativa dessa continuidade, melhor ainda quando feito com a coisa pública para obtenção de interesses privados. Bolsonaro eleva a cloroquina a objeto sagrado, sem comprovação científica, um graal profano de uma Narrativa quixotesca, enquanto várias pesquisas sérias desenvolvem vacinas que são tidas pela base de apoio do presidente como coisa do demônio, que pode prejudicar as pessoas. A posse do Ministro da Saúde demonstrou bem isso. O presidente e seu governo exclui o social, o meio ambiente, o outro que necessita de apoio de políticas governamentais (e que deveriam ser de Estado), a comunidade negra, a comunidade LGBTQA+. Os outros são homo sacer - pessoas sagradas, simples Biós, passíveis de serem excluídas e exterminadas; são impedidas de realizar aquilo que nós temos em comum como seres humanos - a capacidade de sofrer e reconhecer o sofrimento no outro, ou seja, de desenvolver a Zoé.

A ficão científica e suas alegorias não são apenas prospectivas. Não são mesmo, especialmente as que têm em seu cerne questões políticas e sociais. Mas também não são redutivas, não se restringindo a simplesmente apontar o dedo - apesar de pôr bem o dedo na ferida.