sexta-feira, 11 de outubro de 2019

"Tragam seus mortos", ou James Joyce e a dança da vida

Os Mortos.

Escrito quando Joyce tinha entre 25 a 27 anos. Son of a gun!

Minha ideia inicial era escrever sobre Dublinenses, a festejada coletânea de contos do autor. São textos em que ele...
Falo sobre o resto do livro depois.
Aqui quero celebrar esse conto que considero um dos melhores textos que já li em minha vida. 
E como li só há pouco tempo, além dos quarenta anos, e sendo um leitor bem melhor do que há vinte anos, estou certo de que é uma obra-prima.
Destoa muito dos outros contos de Dublinenses. Apenas na primeira página você já nota o quanto Joyce nos diz tanto com tão poucas palavras, confiando que você, leitor, vai captar as idiossincrasias das personagens, a maneira como o autor mostra os acontecimentos em vez de descrevê-los - show don't tell.

A par das inúmeras figuras marcantes do livro - Gretta, as Srtas. Morkan, Freddy... - e outras nem tão marcantes, mas com papel central no desenrolar dos acontecimentos, tais como Molly Ivors e Lily - é inescapável que a trama é tecida ao redor de Gabriel Conroy - professor, escritor, orador, poeta...

A história de Os Mortos é permeada de símbolos, metáforas: temos logo no início Lily, lírio, flor ligada aos funerais, com sua brancura e a da Dublin cercada pela neve; alusões às Melodias Irlandesas de Thomas Moore, em que uma das mais conhecidas é "Ó, vós, os mortos!". Vejo, e aqui é uma egolombra, esse diálogo, ou melhor, essa dança entre os vivos e os mortos em todo o conto: na música, na quadrilha, na comida do jantar, nos nomes, no fim do período natalino etc.
Joyce faz um uso magistral do discurso indireto livre, e as vozes narrativas, que no início confundiram esse leitor desatento, é indício para nós do quanto o narrador pode mentir descaradamente. E que prazer descobrir esses enganos, propositais ou não.
O conto de Natal pode ser dividido em três atos principais, assim imagino - o início, com a chegada dos convidados na casa das tias de Gabriel, as Srtas. Morkan; o meio, quando começam as danças até o jantar ou a saída dos convivas e, por fim, da saída dos convivas até o final, ou da chegada dos Conroy - Gabriel e Gretta - ao hotel.

Não vou estragar o prazer de quem não leu - só um pouco. Quero aqui falar sobre Gabriel, e comparar a algo com o qual creio de que somos feitos - mitos. Mitologemas, para ser mais exato. Arquétipos, para ser mais amplo.

Gabriel encarna aquilo que se costuma chamar de unilateralidade da personalidade consciente. E, com sua persona inflada, não reconhece a própria vulnerabilidade, os espaços - ou vazios - obscuros dentro de si. Não reconhece o outro por ser muito cheio de si, isso sim.
Ele é o Arcanjo da Anunciação, o Orador, aquele a quem as principais atenções parecem ser dirigidas. 
Ele parece ter se identificado com um poder divino interno.
Um tema que predomina nos textos de Joyce é o Renascimento Irlandês - o amor às tradições, símbolos e arte da pátria. 
Em alguns dos textos, vemos mesmo o viés político desse patriotismo, anterior à independência irlandesa. Como exemplo, temos o conflito entre católicos e protestantes. Ser um irlandês é ser papista, enquanto os protestantes são fruto das escolhas de Henrique VIII, ou seja, dominados e aliados aos ingleses.
 Gabriel, levado a esse assunto por Molly Ivors, quer estar por cima da carne seca, parece ser um cosmopolita europeu, e não um bairrista de um país sob o império do Reino Unido.
A forma como ele se sentiu humilhado por Ivors, a maneira ríspida como Lily lhe respondera no primeiro ato, e toda a excitação febril ansiada e barrada por outro poder divino - Micheal Furye, arcanjo Miguel, o Furioso, o guerreiro matador - só me fazem pensar que em sua hybris, em sua personalidade inflada, se afastou de sua medida humana, seu metron, e apenas lhe fora aberto o caminho para sua reconciliação com a parte perdida de si mesmo no fim do livro, ao perceber a força das coisas "mortas" - ideias, sentimentos, ou seja, a vida interior, sua e do outro.


Lido no livro


Dublinenses (Dubliners)

Tradução de Caetano W. Galindo
Companhia das Letras/Penguin


Gosto muito da capa da edição da Ed. Autência;  de 2006, creio eu. Ela é o registro do discurso de Gabriel quando do jantar de Natal.

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