quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Impressões sobre O Seminarista, de Rubem Fonseca

 Evocando o personagem epônimo, há uma estranha simetria entre a vida e a morte. O narrador-personagem, porém, apenas vai encontrar essa estranheza ao se aposentar.

José é um ex-seminarista que não conseguiu seguir a batina porque os desejos carnais tiveram preponderância sobre os divinos. Ele, então, se tornou um assassino profissional. E, no início da obra, aoesar de narrar alguns assassinatos encomendados para mostrar a que veio, o que ele textualmente diz no livro -- dentre eles uma passagem na qual ri muito (sim, tenho um humor mórbido em alguns momentos), quando o assassino procura um necrófilo e encontra o retrato de uma das suas vítimas, a qual José diz ser "bonita para necrófilo nenhum botar defeito --  a trama tem sua importância nos acontecimentos que se desenrolam após a aposentadoria. 

A partir daí, José percorre diversos pontos da cidade -- Rio de Janeiro -- imiscuindo-se com a burguesia mais sórdida e buscando ajuda junto a tipos suburbanos e que vivem à margem da lei -- estes quase sempre amigos do passado. Esses personagens mais periféricos têm nome, mas é o apelido que se sobressai: O Gralha, Sangue de Boi... Essa quase aventura começou porque José ficou desconfiado de que o estavam seguindo, isso depois de ele estar quase vivendo junto com sua namorada -- uma alemã que trabalhava com tradução. Não se engane o leitor, tudo é importante na obra, cada detalhe que Rubem Fonseca põe e que, lá na frente, salta do texto como se fosse nos pregar uma peça. 

O formato do livro é José narrando suas peripécias até o ponto em que ele se encontra -- na vida, na história -- no final do livro. Já me acostumei com as narrativas rápidas de Rubem Fonseca. Esta é uma delas, mais para uma novela do que um romance. Recomendo sua leitura em um dia, no fim da tarde...

O assassino tem ideias bem formadas quanto a seu envolvimento com mulheres -- devem ser magras, não muito altas, com barriga lisa, bumbum firme e seios pequenos -- quanto ao fato de não ler jornais e nem ter remorso algum. Suas paixões: ler poesia ouvindo rock, ver filmes e ir a sebos. Com o passar da trama, vemos José ser surpreendido por não ter visto determinada notícia, por ter comido um prato mais elaborado (e gostoso) em um restaurante mais caro, por ter conhecido alguém com quem vale a pena estar junto. As elipses são interessantes na obra porque Fonseca não precisa explicar nada, basta prestar atenção nas escolhas e mudanças do personagem -- por ex.: ele foi chamado de frouxo e maricas por seus amigos quando era guri porque não quis matar um galo (por princípio, ele não matava animais), mas algo muda nisso, e só você lendo para descobrir.

Em alguns momentos -- como quando da explicação sobre a adega de vinho ou sobre que tipo de bacalhau será servido -- os personagens apresentam um ar professoral que destoa da obra. Creio, porém, que o pedantismo é proposital, basta situar o livro no opus de Fonseca: ele descasca a hipocrisia da burguesia e apresenta personagens que vivem em uma miséria física e espiritual, e tudo o que vem de personagens ricos nos livros dele parece ser um verniz que esconde uma podridão moral e também ética. Parafraseando o autor, os pobres fazem o necessário em sua luta pela sobrevivência no ambiente urbano, enquanto a burguesia afia os arames farpados.

José apenas queria tranquilidade, mas não esperava uma aposentadoria tão "rica". A riqueza com a qual nos brinda Rubem Fonseca é mostrar, sem psicologismos, a mudança de atitudes de José, especialmente em algumas ações destoantes do que ele propagava.


O Seminarista, de Rubem Fonseca.
Ed. Ediouro, 120 páginas, Kindle.

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